terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Congresso Anual

No auditório, balidos, guinchos, berros, latidos, um Deus nos acuda. Ê bicharada incivilizada! Até que das caixinhas de som ecoou um rugido longo e violento. Silêncio. Nem um piu. Todos atentos à mesa principal.

Pomposo, o rei Juba Ruiva, o Impiedoso (filho de Juba Negra, o Tirano, e Juba Pastel, a Indolente) abriu os serviços do dia:

- Crraam... bem-v fuiiiiiiiiiiiiiiin – microfonia. Continuou o leão: – Bem-vindos à 2346ª Conferência Anual das Espécies Inteligentes Eleitas por Noé, neste ano realizado em terra firme conforme decisão do Conselho Mundial das Espécies Inteligentes. Para iniciar nosso encontro, convido à mesa o companheiro tubarão Branco, diretor da comissão Habitat e Nicho Marinho desse Conselho.

Nhequenhequenheque. Dentro de um aquário mínimo em cima de um carrinho empurrado custosamente por um símio de quepe vermelho, subiu ao palco a austera fera marinha, conhecido oposicionista de Juba Ruiva. Nenhuma palma; em partes por medo de zangar o rei, em partes por pavor: e se o vidro estourar? Danou-se!

Enquanto o macaco desembaçava o vidro, Juba Ruiva continuou:

- Convido a vir à mesa também o pelicano Cicone, diretor da comissão Habitat e Nicho Aéreo e vice-presidente do Conselho Mundial das Espécies Inteligentes.

Aí sim muitas palmas! O pelicano tinha aparecido há duas semanas na revista mais famosa do mundo animal mostrando a gruta onde sobrevivia, o ninho aveludado e os ovos que prometiam dar vida àquele lar. Corriam boatos de que ele seria candidato à presidência do Conselho.

Visivelmente enjoado daquele cerimonial todo, Juba Ruiva prosseguiu:

- Convido a toupeira Topero a compor a mesa, diretor da comissão Habitat e Nicho Subterrâneo do Conselho Mundial das Espécies Inteligentes.

Aí sim a casa caiu: a vaia encheu o salão, ergueram-se faixas de protesto que atestavam que desde o dilúvio não se via apadrinhagem como esta, os suricates que estavam logo na segunda fila viraram-se para a plenária, dando as costas à mesa, ao que foram aplaudidas fervorosamente. As ovelhas até imitaram o gesto. Os lagartos gritaram “baba ovo.” As hienas se acabaram de rir, eram mestras naquela história de criticar por escárnio.

Mas nada disso se mostrou muito problemático. Uns gritos de “ordem nesta casa”, uns rugidos, um olhar mais severo às zebras que insistiam em animar a balbúrdia e o silêncio se restabeleceu.

Ao leitor desinformado ou com memória de galinha, lembro que no 2343º Conferência o Juba Ruiva criou e homologou essa comissão no Conselho provando com testes humanos – ou seja, de procedência sabidamente ilegítima –, que as toupeiras tinham QI superior a 50, o que dar-lhes-ia o direito de compor o Conselho Mundial das Espécias Inteligentes. Juba Ruiva veio ainda com um discurso fajuto de reconhecimento de serviços à natureza e uma balela de direito natural que ninguém entendeu. O que a bicharada entendia e muito bem é que estavam perdendo representatividade, e perder cadeiras no Conselho era perigosíssimo para a sobrevivência da espécie. Curiosamente, desde aquela época a toupeira Topero votava sempre com o Juba Ruiva.

O leão seguiu, impondo a voz firme:

– Lembro a todos que a comissão Habitat e Nicho Terrestre da Comissão Mundial das Espécies Inteligentes é dirigida por mim, que também presido a instituição. E por fim convido à mesa ainda o diretor da comissão temática permanente Atenção ao Humano.

Juba Ruiva sequer citou o nome do diretor, talvez por não saber mesmo. Totalmente indiferentes, o bichos permaneceram impassíveis. Um dos porcos de camisa vermelha se reconheceu totalmente violentado por ter um predador sentado à mesa e guinchou uma reclamação vazia, mas não conseguir atenção. Calou-se.

Quem continuou foi a fuinha Helena, primeira-secretária do Conselho, lendo a pauta de deliberações do dia:

– Leitura das atas e das moções de apoio e de repúdio da 2345ª Conferência (só os golfinhos escreveram 550). A seguir atividades livres nos wokshops: os pandas e o movimento anti-comunista; experimentos genéticos em espécies inteligentes de roedores (tapa na cara das toupeiras que não entenderam a provocação); comentários básicos da teoria darwinista em aves consangüíneas; evidências de vida extra-terrena inteligente; participação animal: a vez e a voz das espécies inteligentes do mundo; os bisões e o aquecimento global; ovíparos, ovovivíparos: novas diretrizes para a classificação, taxonomia e nomenclatura da biologia... Seguindo na programação, temos a Reunião Geral do Conselho Mundial das Espécies Inteligentes. A seguir, apresentação dos trabalhos de grupo. E por fim Plenária Geral do dia.

Mais calmos, os bichos todos seguiram em blocos (por espécie) para as salas de trabalho relativas à sua espécie. Somente a fuinha Helena que lia cansada e os elefantes ficaram para ouvir a ata e as moções, porque eram os únicos que lembravam do começo das recomendações. A sala que deliberaria sobre os alienígenas ficou praticamente vazia: participavam somente três ou quatro corujas de olhos opacos que se interessaram pelo tema e o ofegante macaquinho de quepe vermelho, que supunha ser menos requisitado ali.

O dia correu bem, senão pelo almoço. Sempre dava problema. Era uma questão ética tradicional: durante a Conferência, comia-se apenas vegetais e insetos ou trazia-se para o evento refeição pronta, embalada e picada ao ponto de não se identificar qual o animal abatido. Mas o bafafá era sagrado. Dessa vez, foi uma capivara que disse reconhecer o cheiro de um tio recém-sumido no prato de um jacaré que comia despreocupado e jurava ser frango ao molho madeira. Os frangos, indignados, fizeram imediatamente uma moção de repúdio ao jacaré exigindo retratação formal por parte deste. Mas esqueceram o que ele tinha dito ao certo, só lembravam que era grave, e deixaram incompleto o formulário, e as chinchilas que cuidavam da parte jurídica negaram o pedido.

À tarde outro quiprocó, dessa vez mais sério. Sumiu um carneirinho. A capivara ressentida gritou: “foi o jacaré!” As zebras só se olharam: estavam certas que tinha sido o Juba Ruiva, mas quem é que provaria? E a sra.Carneiro chorava, desmaiou mais de uma vez. Ô, meu Deus, cadê o carneirinho!? Procura, procura. Nada. Até que ouviram um barulho do lado de fora.

Descobriram o carneirinho estirado na grama ao lado do auditório principal tremendo, jurando espontaneamente que não vira quem o atacou. Um sapo com a boca costurada negava coma cabeça que tivesse visto algo. Juba Ruiva exigiu que o autor daquele ato hediondo se apresentasse, que aquilo era selvageria e sei lá mais o que é que era, que nunca isso tinha acontecido antes ali. O culpado não teve a decência de se apresentar. O pelicano ficou publicamente escandalizado mas disse que estava certo de que Juba Ruiva encontraria o desleal causador desse horrível transtorno.

A noite ganhou tom solene. Graças ao Juba Ruiva, a família carneiro recobrara a paz. Uma cobra havia sido apanhada e encontrada já morta – a pauladas –, provavelmente de remorso. Jogaram-na num canto visível. As outras cobras não levantavam a cabeça do chão, tamanha a vergonha. E aumentaram a segurança do evento. Dobrou o número de gorilas a rondar por aí.

No dia seguinte, tudo bem novamente. Apenas os elefantes não se contentavam com a história de uma cobra daquele tamanho não ter conseguido dar o bote em um carneiro tão novinho; os demais sequer lembravam-se do incidente. E sem ninguém ver, o homem foi embora. Saiu à francesa. Não conseguiu ficar sem comer carne.


Carlos Pegurski