quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

80 centavos

O Felipe estava no ponto de ônibus, meio distraído, esperando pela condução que o levaria de volta para casa depois de um dia inteiro de trabalho. Nesse meio tempo, um rapaz meio maltrapilho se aproximou, e pedindo licença começou a contar sua triste (e bem ensaiada) história.

O homem, que se identificou como Adelino, narrou emocionado sua infeliz jornada. O pobre coitado mal tinha chegado na capital, vindo de Queijadinha do Oeste (ou alguma outra cidade do interior com nome parecido) e fora informado que de sua velha mãe tinha sido internada em sua terra natal. Estava, segundo seus parentes, à beira do fim. Em função disso, o pobre Adelino teria que deixar seu sonho de conseguir um bom emprego na cidade grande para outra hora, já que tinha decidido ir ao encontro de sua progenitora. O problema era que, coitadinho, não tinha como pagar a passagem de volta. Sendo assim, explicou que não teve outra alternativa a não ser a de sair pelas ruas pedindo o auxílio de desconhecidos como o Felipe, a quem ele gentilmente solicitou, se não fosse muito incomodo, que lhe doasse míseros 80 centavos, a quantia específica de que precisava para completar o valor de seu retorno à aprazível Queijadinha do Oeste.

O Felipe sabia que a história cheirava à golpe, mas não teve outra escolha a não ser tatear os bolsos e retirar os trocados pedidos pelo Adelino, que quase chorando de alegria agradeceu e se despediu afirmando que, graças ao auxílio do nobre transeunte, ele poderia voltar para casa rever sua velha mãe doente.

Ao se afastar, o Felipe suspirou inconformado com seu próprio coração de açúcar, incapaz de dizer não mesmo quando sua razão dizia para não atender os pedidos daquele que obviamente era um charlatão. Conformado com sua própria covardia, deu de ombros, afirmando mesmo sem muita convicção para si mesmo que ele só tinha “se feito de trouxa” por estar de bom humor. Em outras circunstâncias, não seria assim.

Dias depois, o mesmo Felipe caminhava pela rua meio displicente a tudo quando, para sua surpresa, o mesmo Adelino (aquele que teoricamente ele tinha ajudado a voltar para casa) se aproximou para lhe contar a mesma triste história de antes.

Indignado com tamanha cara de pau (e com a falta de memória) do pilantra, o Felipe decidiu que daquela vez não se faria de besta. Iria reagir. Para se certificar da “escala richeter” de safadeza do Adelino, fez questão de ouvir a história até o fim, para ver se algum detalhe específico destoava do discurso anterior. Tudo igual: Queijadinha do Oeste, mãe doente, pouco dinheiro e 80 centavos para completar a passagem. Até os suspiros e os trejeitos de quem está prestes a cair no choro ele repetiu.

-E então? O senhor pode me ajudar a voltar para casa?

-Escuta Adelino... Posso te chamar assim?

-Pode sim senhor!

-Então tá! Me diz uma coisa Adelino: você não lembra de mim, não?

-Não senhor!

-Pois eu lembro de você! Faz umas duas semanas, mais ou menos, eu estava aqui perto esperando ônibus e você veio me contar essa mesma história.

O Adelino arregalou os olhos surpreso, como se tivessem lhe relatado a existência de um irmão gêmeo desconhecido.

-O senhor tem certeza? Você deve estar se confundindo!

-Não, absolutamente. Era você!

O Adelino reagiu como se tivesse sido ofendido.

-Eu?? O senhor está enganado!

-Não, não estou!

-Escuta: a minha mãe tá doente e...

-Me poupe da balela! Eu sei qual é a tua!

-O senhor está insinuando que eu estou fazendo isso só para enganar as pessoas?

-E não é por isso? Pelo que seria então?

-Para poder voltar pra casa ver minha mãe doen...

-Já disse que a mim você não engana mais!

O Adelino parou, pensou, e com cara de quem acaba de descobrir uma conspiração das mais cabeludas disparou:

-Já sei! Deve ter alguém mal intencionado que soube que eu estou por aqui e está tentando se aproveitar dos meus problemas. Alguém que está se fazendo passar por mim! Deve ter sido ele que o senhor viu esses dias atrás!

-Ué... Você não disse que tinha chegado hoje na cidade?

-Vai ver que descobriram que eu viria pra cá!

-E eles sabiam também que sua mãe ia adoecer?

-Ah... Bem... Ééé... Ela já estava meio fraquinha quando eu saí de lá!

-Você disse que ela era forte como uma pedra, lembra? Que você estava até duvidando do tal internamento dela!

-Bem... É que...

-Já chega amigo! Você é persistente, eu admito, mas a mim você não engana mais!

O Adelino se indignou.

-É por gente como você que o país não vai pra frente! Fica aí negando ajuda pra um pobre coitado que não tem como voltar pra casa! Você deveria se envergonhar. Se eu tivesse pedido uma quantia alta... Mas são só 80 centavos. Pra eu rever a minha mãe. Que tá doente. Ah... Quer saber? Faça o que bem entender, ouviu? Seu desalmado!

Dito isso, ele se virou e foi embora, bradando protestos para todos os lados, fazendo com que o Felipe virasse alvo de dúzias de olhares desaprovadores dirigidos pelos demais transeuntes que se indignaram com a falta de compaixão do rapaz para com o pobre homem desafortunado de Queijadinha do Oeste.

Ao longe ainda dava para se ouvir os protestos indignados do Adelino:

-Que povo desalmado! Isso é uma vergonha! Esse mundo tá perdido!

Ao Felipe, sem graça, só restou suspirar e concluir que, apesar dos pesares, o Adelino era insistente. Tinha lá os seus méritos:

-É... Brasileiro não desiste nunca... Nunca mesmo!