domingo, 16 de março de 2008

Nogueira, o mito

Ninguém tinha entendido como o Nogueira, justo o Nogueira, tinha conseguido conquistar o coração da Helena. Ele, que nunca tinha sequer completado o ensino fundamental, estava namorando uma mulher que já era quase doutora.

Não que escolaridade sirva de parâmetro para regular “quem pode namorar quem”, mas a união dos dois era no mínimo improvável, sobretudo se levarmos em conta que o rapaz era um verdadeiro troglodita com pedigree. Nem a própria Helena sabia explicar direito como tinha se deixado conquistar pelo Nogueira:

-Sei lá... Ele é engraçado!

Mas, engraçado mesmo foi observar o exercício intelectual do Nogueira num almoço de confraternização promovido pela família de sua namorada.

Ao redor da churrasqueira, tios, primos, pai e demais familiares da Helena, todos mestres e especialistas em alguma área de estudo específica, conversavam animadamente sobre todo tipo de assunto: economia, filosofia, história, sociologia, física... Em alguns momentos, o debate ficava tão acirrado que uma pequena força tarefa composta pelos debatedores menos exaltados tinha que intervir para evitar que alguns deles saíssem no tapa em defesa de seus pontos de vista.

Apesar da “rivalidade”, os encontros daquele tipo já eram tradicionais na família, bem como os diálogos acalorados que, apesar de tudo, sempre terminavam em boas risadas.

O Nogueira assistia a tudo quieto, com um sorriso amarelo. Sentia-se como um peixe fora d’água. No fundo, ainda mantinha a esperança de que hora ou outra alguém entrasse em um assunto que ele tivesse alguma intimidade.

No entanto, o tempo passava, e nada do Nogueira conseguir destilar seu conhecimento sobre os assuntos que lhe eram familiares.

Foi logo depois de uma explanação de um tio da Helena, mestre em história, sobre os motivos do declínio do Império Romano que o Nogueira, já cansado do papel de figurante na conversa, resolveu entrar no papo com estilo:

-Pois é... Falando nisso, vocês sabiam que o Nero botou fogo em Roma enquanto fazia um churrasco? Ouvi dizer que ele exagerou no carvão, e, quando viu, já tinha pegado fogo em metade do lugar!

Ninguém entendeu ao certo se o Nogueira tinha feito uma piada ou não. Por via das dúvidas, todos riram. A Helena, desesperada com a demonstração dos conhecimentos históricos do namorado, fez questão de tirá-lo imediatamente da roda antes que alguém procurasse interrogá-lo a fim de descobrir maiores detalhes sobre a sua exótica teoria.

O Nogueira protestou:

-Pô, amor! Agora que eu estava começando a me enturmar você me tira de lá?! Pré-história é o meu forte!

A Helena permitiu que o Nogueira voltasse para a roda de conversa, mas apenas depois dele prometer que não abriria mais a boca sob hipótese alguma.

No fim das contas, depois de cada assunto debatido, o Nogueira apenas fazia uma cara reflexiva e balançava a cabeça afirmativamente, ou não. Os tios da Helena ficaram impressionados com a capacidade de análise do rapaz que, mesmo sem dizer nenhuma palavra, aparentava, só pela fisionomia, estar interado sobre todos os assuntos debatidos pelos doutores presentes. Chegou a virar uma espécie de oráculo:

-Então você realmente acha que a deriva genética, aquela que controla a freqüência alélica dos indivíduos, teve um papel fundamental na teoria da evolução humana?

O Nogueira fez uma careta, pensou, pensou, e, com um ar de superioridade balançou a cabeça afirmativamente como quem diz: “é evidente que sim!”

Sensação ao redor da churrasqueira. De uma hora para outra tinham descoberto que estavam diante de um intelectual dos mais conceituados, um Charles Darwin do século XXI. Para eles o Nogueira era polêmico, ousado e questionador... Mesmo sem abrir a boca.

Ao fim do evento, todos os parentes da Helena fizeram questão de apertar a mão do Nogueira e convidá-lo para fazer uma visita a fim de “conversar” melhor sobre algumas das tantas teorias debatidas.

A Helena mal podia acreditar no que estava vendo. O namorado, de figurante, tinha virado protagonista do bate papo.

-Ei! Amor?! Já posso falar agora?

O Nogueira, quem diria, virou mito.