terça-feira, 26 de agosto de 2008

Danilinho

No começo ele chegou a pensar que era um assalto. Caminhava pela rua quando foi agarrado pelo pescoço numa chave de braço digna de medalha olímpica se estivsse na disputa de luta greco-romana. Quando finalmente conseguiu se desvencilhar do ataque, se deu conta que quem tinha lhe agarrado não era um bandido. Pelo menos não um bandido qualquer: tratava-se de uma loira alta, esguia, que exibia um sorriso de felicidade escancarado. Uma visão tão deslumbrante que lhe fez engolir seco as dúzias de impropérios que iria desferir assim que fosse solto.

-Danilinho!!! Eu não acredito que é você! – Gritou a moça, visivelmente comovida com o encontro.

Mas nem ele acreditou, já que o seu nome era Felipe, não Danilo. Aliás, numa rápida análise de memória, se deu conta de que nem ao menos conhecia alguém com aquele nome. Também nunca tinha visto antes aquela loira de atributos generosos, tinha certeza. Era bom fisionomista. Jamais esqueceria um rosto (e um corpo) como aquele.

Obviamente tratava-se de um engano. Devia ser parecido com o tal de Danilinho, que provavelmente era um velho amigo dela do passado. Quer dizer: não deveria ser só um "velho amigo", e sim um "grande amigo". Dava para ver em seu rosto. Sua empolgação era tamanha, que parecia estar diante de um tesouro recém descoberto.

Era uma pena, mas teria que explicar que não, ele não era o Danilinho. E olha que, naquelas circunstâncias, ele bem que queria ser. Praguejou em pensamento: “Se não bastasse eu estar sozinho, ainda tenho que dispensar uma obra de arte dessas. É muita ironia do destino!”

No entanto, quando ia desfazer o equívoco foi contido por outro abraço da loira sorridente. Ficou sem ação. Sua cabeça pedindo para explicar a situação de uma vez, mas seu corpo estagnado.

-Caramba! Eu não acredito que é você! – Disse a moça, com os olhos marejados.

-Na verdade acho que a senhorita está...

-Você lembra-se de mim, né?

Ele ainda tentava assimilar a situação. Não era todo dia que uma mulher daquelas se atirava, literalmente, no seu pescoço. Duas vezes. Pior ainda: ela lhe observava com cara de criança pidona à espera de um “sim, eu lembro de você”.

Aqueles olhos verdes, esperançosos por uma resposta positiva, e ele ali, prestes a acabar com tudo.

Talvez fosse o Sol forte na nuca, ou aqueles lábios reluzentes trêmulos de expectativa, mas ele não conseguiu dizer não.

-Mas é claro que eu lembro de você!

Foi pego de surpresa com a própria resposta. Não era homem de enganar ninguém, muito menos de ficar flertando com uma moça que jamais tinha visto antes. “Ai meu Deus, o que foi que eu fiz?”, pensou ele já meio arrependido.

-Aiiii Danilinho! Que bom! Você não sabe da saudade que eu sentia de você. – Disse ela, abraçando-o novamente.

Mais um abraço daqueles e ele admitiria ser até a Cleópatra se ela pedisse. Aqueles braços delicados em volta de seu pescoço, os seios fartos repousados contra seu peito, aquele corpo voluptuoso e macio como seda junto ao dele, o perfume doce que inundava seu olfato... Não dava para resistir. Os sentidos sucumbiram à razão. Era seu dever cívico levar a conversa adiante.

Ainda empolgada, ela carregou-o pela mão até a mesa de uma cafeteria que ficava do outro lado da rua. Um encontro daqueles, mesmo inesperado, merecia um diálogo de verdade.

Sentaram-se. Ela pediu um cappuccino, só para ter um álibi para usar a mesa. Ele, para acompanha-la, um café.

-Quanto tempo, né? – Disse ela, sem tirar o enorme sorriso da cara.

-Ô! Bota tempo nisso. – Respondeu ele ainda meio sem jeito.

-Fazem o quê? 15 anos?

-É... É... Acho que fazem sim.

-Nossa! O que a gente aprontou naquele colégio, né?

-É... No colégio! Aprontamos horrores.

-Você sempre metido em confusão e eu sempre salvando a sua pele.

-É, né?

-Eu era santinha, até conhecer você.

-Pois é.

Não tinha o que dizer. Como dialogar sobre o passado com alguém que não se conhece? Usava apenas respostas evasivas, tentando fazer com que ela soltasse alguma pista com que pudesse trabalhar.

-Lembra daquela vez em que a gente botou chiclete na cadeira da professora?

-Acho que lembro, sim!

-Lógico que lembra. Tem que lembrar. Foi você que insistiu pra gente fazer aquilo. Aliás, você sempre me convencia com aquela sua lábia.

-É, né? Eu era... Terrível!

-Como era mesmo o nome daquela professora? Só sei que era bem engraçado.

-Bozolina?

-Não... Não era isso! Mas você devia lembrar. Você tinha fama de ter memória de elefante.

-Eu? Imagina.

-Tinha sim... – Neste instante o garçom trouxe os pedidos: o cappuccino dela e o café dele. Ela questionou. – Aliás, se bem me lembro, você não bebia café.

Sentiu que estava prestes a ser desmascarado. Desconversou.

-Muita coisa mudou de lá pra cá.

-Discordo. Você, pelo menos por fora, não mudou nadinha. Tá a cópia exata do cara que era da última vez que te vi. Até parece que o tempo não passou para você.

-O que é isso, imagina! Você sim está ótima. Linda como sempre.

Parecia impossível, mas ela conseguiu sorrir com ainda mais intensidade depois do elogio, fazendo o Felipe concluir que tinha tomado a decisão certa ao dizer ser quem não era. Só aquele sorriso já tinha recompensado com sobras sua ousadia.

-A gente era tão amigo, lembra?

-Claro que lembro... Éramos... Sei lá... Inseparáveis.

-Eu te contei todos os meus segredos. Era a única pessoa em quem eu confiava. Você era o meu porto seguro.

-Pois é. Mas eu também te contava meus segredos.

-Contava nada. Dizia que eram coisas pesadas demais pra compartilhar comigo. Típica desculpinha esfarrapada.

-Ah, é? Tinha esquecido disso.

-Lembra daquelas tardes em que passamos embaixo daquele pé de ipê no quintal de minha casa, papeando sem parar?

-Lembro.

-Lembra como a gente gostava de ficar deitado na grama até bem tarde para contar as estrelas?

-Lembro.

-Lembra daquele esconderijo secreto que a gente tinha lá perto da sua casa, onde volta e meia a gente visitava só pra poder ficar sozinho e conversar?

-Lembro.

-Pois é. Fazíamos uma bela dupla.

-É... Uma dupla do Barulho.

-“Danilinho e Sandrinha, os terríveis!”, era assim que chamavam a gente, tá lembrado?

Sandra, vulgo Sandrinha. Finalmente tinha descoberto o seu nome. Se bem que o diminutivo não tinha qualquer validade. Não existia nada de “inho” nela. A Sandra era “ão”, dos pés à cabeça.

-Como é que eu poderia me esquecer? Foi uma época tão feliz.

-Para mim também, sabia? Juro pra você que eu acho que foi uma das melhores da minha vida. Mas o mundo da voltas. A gente cresce, e perde contato com as pessoas.

-Pois é.

-Mas agora o destino nos pôs de volta um no caminho do outro. Não vou te perder mais de vista. – Neste instante, ela delicadamente pegou em suas mãos e olhou no fundo de seus olhos.

-Nem eu, nem eu... – Disse o Felipe, tentando retomar os próprios batimentos cardíacos.

-Sabe... Quando eu te vi... Sei lá! Não me controlei. Tinha certeza que era você, por isso te agarrei daquele jeito, pelo pescoço. Percebi que você ficou meio sem jeito. Desculpe se te dei um susto.

-Não tem problema. Admito que me assustei um pouco na hora. Mas foi um susto bacana. O mais lindo que eu já tive. – Retrucou ele, deixando-a visivelmente encabulada com a frase.

Ele vibrou com o próprio flerte. Podia ser só coisa da sua cabeça, mas sentia que existia mais do que nostalgia na voz da moça que lhe confundira com outro homem. Ela parecia fascinada. Era como se tivesse algum tipo de sentimento mal resolvido entre ela e o velho amigo que ele fingia ser.

-Você, hein? Sempre um galanteador, né Danilinho?

-O que eu posso fazer? Você causa isso nas pessoas. Só estou relatando o que vejo.

-Não foi o que você me disse há 15 anos, lembra?

-Como?

-Você sabe que eu era louca por você.

-Sei??

-Claro que sabe... Lembra que poucos dias antes da gente terminar o colégio, eu te pedi em namoro?

-Pediu??

-Até cheguei a pensar que você ficou meio bravo comigo, na época. Fiquei mal e tudo mais. Foi um peso na consciência que carreguei comigo por todos estes anos. Você não ficou bravo, ficou?

O Felipe mal podia acreditar. Estava diante de uma das mulheres mais deslumbrantes que tinha visto em toda vida, e ela tinha acabado de admitir que era apaixonada por ele desde menina. Quer dizer: por ele não. Por um cara muito parecido com ele. Mas isso era só um detalhe.

-Claro que não. Por que iria ficar chateado com você?

-É que, sei lá. Na época você pareceu ter ficado. Disse que não queria namorar comigo, que não queria estragar nossa amizade. Você foi gentil, mas achei que tinha se zangado por eu ter tomado a iniciativa de tentar algo mais sério.

O Felipe não pôde deixar de praguejar o Danilinho em pensamento. Como é que um homem em sã consciência poderia negar um pedido de namoro de uma mulher daquelas?

-Eu jamais faria isso. Você sempre foi importante para mim. – Disse ele, modulando sua voz para o estilo “cantor de bolero”, deixando-a ainda mais sem jeito.

-Ai, Danilinho!

“Dane-se o bom senso”, pensou o Felipe. Aquílo não era coincidência, aquílo era o destino! Sim, o destino. Situações como aquela não aconteciam à toa. Alguma coisa deveria ter colocado ele ali para corrigir aquela injustiça, para saldar a dívida que o frouxo do Danilinho não tinha quitado no passado. Era seu dever terminar o que um dia aquele canalha tinha começado. Era questão de justiça fazer a Sandrinha feliz... Pelo menos era o que ele diria a si mesmo se sua consciência ficasse pesada.

-Mas, olha: quer saber? Você fez a coisa certa quando não aceitou o meu pedido. – Disse ela, tentando desconversar.

-Não. Eu estava errado.

-Errado? Como assim?

-Eu errei. Ficar com você teria sido a coisa certa.

-Sério, Danilinho?

-Não teve um só dia durante todos estes anos em que eu não tivesse me arrependido daquela decisão, Sandrinha.

-Ai, Danilo! Não brinque com uma coisa dessas. Você não sabe como foi difícil para mim te esquecer e...

-Pois a partir de hoje você não precisará mais me esquecer. Poderá me guardar para sempre em seu coração. – Disse o Felipe, para em seguida tomar a Sandrinha nos braços e beijá-la longamente.

***

Horas mais tarde, no apartamento da Sandrinha, o Felipe se distraía fazendo planos para o futuro enquanto observava a loira deslumbrante que tinha lhe agarrado na calçada dormindo nua na cama do quarto, com um inconfundível sorriso de felicidade entre os lábios.

No dia seguinte, durante o café, explicaria para ela a situação. Diria que não era o Danilinho, e sim o Felipe, um leonino de 27 anos que trabalha como contador. Um paranista, solteiro, que gosta de ler revistas em quadrinhos e jogar vídeo-game nas horas vagas. Em síntese: um partidão.

Se ela por ventura não gostasse da revelação (hipótese bastante improvável na visão dele), explicaria que ficou comovido com a situação da moça, e que iria se sentir um canalha se tivesse que lhe dizer que não era seu amigo dos tempos de adolescência. Diria que era um cara altruísta, do tipo que não pode ver ninguém sofrendo, que já quer ajudar. Além do mais, iria fazê-la feliz, como o tapado do antigo colega (que segundo ele era um safado de marca maior por ter “‘enganado’ ela durante todos aqueles anos de convívio, lhe dando falsas esperanças”) jamais faria.

Ela certamente haveria de entender a situação e perdoá-lo.

Naquele instante, a Sandrinha acordou. Com muito custo, abriu discretamente os olhos, se espreguiçou, e com um sorriso nos lábios perguntou:

-Você não vem dormir? Está tão gostoso aqui...

-Já vou meu anjo, já vou.

Ainda reflexivo, cochichou baixinho, para si mesmo:

-Danilinho, Danilinho... Você deveria me agradecer!

E foi deitar.

Piada

É oficial: o melhor programa de humor da TV brasileira chama-se “horário eleitoral gratuito”.

É impressionante a capacidade que os postulantes a cargos públicos têm de passar ridículo em TV aberta só para chamar a atenção do povo. Mais impressionante ainda é como os publicitários envolvidos nas campanhas permitem que estas pessoas cometam atrocidades ao bom senso.

Chego a imaginar que certas coisas são até incentivadas...

-Eu pensei numa rima pra dizer durante o meu tempinho.

-Sério senhor Valdeci? Vamos ouvir!

-“Valdeci, esse é dos bão!”

-Ummm... Bacana. Só não rimou!

-Ah não? Bem que minha filha tinha me dito isso.

-Mas serve de slogan.

-Ah é?

-Serve sim. Muito original, inclusive.

-Sério? Fui eu mesmo que fiz.

-É, percebi.

-E quanto as minhas propostas?

-Que propostas?

-Minhas propostas de campanha pra falar na TV.

-Nossa! O senhor tem propostas?

-E não era para ter?

-Na teoria era, mas ninguém traz. É supérfluo. Além do mais, o povo gosta mesmo é do espetáculo.

-Espetáculo?

-Sim. O senhor sabe fazer careta?

-Careta?

-É. O povo gosta disso.

-Sério?

-Claro! O slogan e uma careta. Sucesso na certa.

-Será que dá certo?

-Claro que dá. A democracia é isso, amigo. Tenho anos de experiência.

-Bem... Já que você está dizendo...

-Ótimo! Esse é o espírito. Vamos lá, me mostre o que pode fazer.

-Tá jóia, lá vai...

-Razoável. Tente esticar mais a boca.

-Só vai até aqui.

-Entendo. É... Não vai ter jeito. Produção!! Tragam a barba postiça!

Não me levem a mal: acho extremamente triste ver como somos tratados como idiotas por boa parte dos políticos, e mais triste ainda: como muitas pessoas ignoram (ou simplesmente não enxergam) isso, e depositam seus votos nestas pessoas. No entanto, não tem como não rir da nossa própria desgraça. É como uma daquelas piadas de humor negro: a gente sabe que não deveria, mas gargalha assim mesmo com a situação.

Tem que rir para não chorar.

domingo, 27 de julho de 2008

Estômago

O Everson era uma espécie de lenda entre os amigos. Quando se reuniam em busca de diversão, era ele quem comandava as hordas bárbaras de beberrões com a autoridade de um general em combate. Dava ordens aos garçons, administrava e distribuía os aperitivos, e bebia tal qual um possante de oito cilindros num posto de gasolina. Um “Genghis Khan” do boteco, como era conhecido informalmente.

Ninguém ali era capaz de fazer frente ao espírito kamikaze do rapaz, que tinha em seu currículo boêmio comas alcoólicos suficientes para registrar em catálogo. Alguns, inclusive, dignos de admiração pelos demais colegas.

-Lembra daquele porre do Everson?

-Se eu lembro? Fui eu quem tive que levar ele pra casa, tá lembrado?

-Como será que ele conseguiu, hein? Nunca tinha visto ninguém beber tanto.

-Vai por mim... O Everson é um fenômeno. As cervejarias deveriam construir estátuas a ele em praça pública como forma de agradecimento.

Mas um dia tudo mudou.

O Everson mal tinha consumido a primeira dúzia de garrafas de cerveja quando sentiu uma fisgada no estômago. À medida que o tempo passava a sensação ruim piorava. Uma ânsia cada vez mais incontrolável ia, sorrateira, vencendo seu autocontrole. Não demorou muito para que a situação ficasse insustentável. Sem alternativa, correu para o banheiro, onde, segundo ele próprio, só não vomitou a própria alma porque felizmente ela não era liquida.

Mesmo a contragosto aceitou a sugestão de passar alguns dias afastado dos eventos etílicos promovidos pela galera. Afinal de contas, tanto abuso no decorrer dos anos certamente teria seu preço, nem que esse fosse o de passar algum tempo longe do bar.

Na semana seguinte, já aparentemente recuperado, foi ao encontro dos colegas. Mas a tão aguardada volta triunfal parou nos primeiros goles. A sensação ruim não só voltou, como dessa vez as conseqüências foram ainda mais vorazes. Foi levado para casa às pressas, antes que a situação ficasse pior, e que o banheiro do local fosse permanentemente interditado.

Inconformado, perguntou a si mesmo o que estava acontecendo. Nunca tivera tido aquele tipo de “frescura” antes.

Insistente, continuou tentando sistematicamente reassumir o controle sobre o seu estômago... Em vão. A coisa piorara a tal ponto, que até o cheiro de uma bebida qualquer lhe causava asco.

Depois de algumas semanas de golfadas persistentes e incontroláveis, contrariou seus próprios princípios e resolveu ir a um médico.

Exames e mais exames chegaram ao mesmo diagnóstico: ele estava absolutamente saudável.

-Mas doutor... Eu nem posso chegar perto de uma bebida com um pouquinho de álcool que eu começo a passar mal. Tem que ter alguma coisa fora do lugar!

-Acredite: você está mais saudável do que a maioria das pessoas por aí.

-Não tem de errado nada mesmo?

-Nada!

-Nem no estômago, no fígado... Sei lá!

-Não, tudo em ordem.

-Nem uma cirrosezinha?

-Olha: pelo que você me descreve, isso é absolutamente psicológico.

-Mas não tem sentido.

-Pois é. Mas só pode ser isso. Fisicamente você está em perfeitas condições.

A coisa era pior do que ele imaginava. Se um beberão que não conseguia nem ao menos ser repreendido pelo médico era motivo de vergonha, que dirá então um que era classificado como “saudável”... Era a humilhação suprema.

Desesperado, partiu em busca de uma cura para sua insólita “maldição”.

Psicólogos, psiquiatras, gastroenterologistas, videntes, pais-de-santo... Todas as alternativas possíveis de melhora foram buscadas, fossem elas ortodoxas ou não. No entanto, nenhuma surtiu resultado.

Resignado, concluiu que seu estômago tinha se tornado uma espécie de “chacota divina”, uma prova inexorável que Deus não só tinha um senso de humor bastante peculiar, como adorava fazer uma piada. Afinal de contas, quer algo mais irônico do que um boêmio de pedigree que não consegue mais beber, por mais saudável que ele estivesse?

O Todo Poderoso deveria estar lá em cima, rindo pra valer da própria anedota.

Vez por outra ele ainda comparece aos encontros promovidos pelos colegas, apenas como espectador. Mas não é a mesma coisa. Descobriu que ser o único são numa mesa de bar tira toda a graça da brincadeira.

Hoje o Everson é um outro homem: vive uma vida regrada, só toma água, come apenas alimentos saudáveis, perdeu peso, arranjou uma bela namorada, passou a aproveitar melhor seu tempo, prosperou profissionalmente e etc, etc, etc...

Mesmo assim, há quem diga que às vezes é possível encontrá-lo num canto qualquer, chorando feito criança, com saudades de seus tempos de boêmio.

Pobre Everson... Que mundo cruel!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Ódio

Conheceu-a numa festa. Tinham uma amiga em comum que lhes apresentou um ao outro, achando que a dupla combinava. Mas ele não achou. Não era feia, mas tinha algo nela (nem ele sabia dizer o que) que tinha lhe despertado uma intolerância ímpar. Não era nem antipatia. Odiou-a de uma vez.

Semanas mais tarde, por uma dessas ironias do destino, descobriu que não só trabalhavam na mesma empresa, como dividiriam o mesmo setor. Os cargos eram parecidos, e exigiam colaboração mútua.

A convivência diária só fez aflorar ainda mais repugnância de sua parte para com ela.

Odiava o jeito que ela lhe dizia “bom dia” pela manhã. Odiava a forma como sua voz esganiçada tomava conta de todo o ambiente inundando seus ouvidos. Odiava seus comentários a respeito de qualquer coisa, fosse um assunto ligado ao trabalho ou não. Odiava sua pretensiosidade oculta, seu ego inflado que fazia questão de esconder de todos com falsos sorrisos inocentes. Odiava a maneira paciente com que lhe dava conselhos técnicos sobre a empresa, tratando-o como um ignorante qualquer. Odiava o seu olhar moralista que parecia sempre fazer questão de analisá-lo após cada atitude. Odiava a simpatia complacente e consoladora que manifestava, quase que por pena, após suas falhas. Odiava suas congratulações efusivas, obviamente falsas, após cada um de seus acertos. Odiava a maneira com que ela agia nas negociações do trabalho, dando sempre a entender que não confiava nele. Mas, acima de tudo, odiava ouvir dos demais colegas que eles faziam uma grande dupla, e que a empresa tinha conseguido ótimos resultados graças ao esforço conjunto deles. Odiava ter que dividir os seus méritos com aquela mulher.

Um dia (por pura formalidade, deduziu) ela o convidou para um encontro com alguns conhecidos. Sentiu náuseas quando ouviu o convite. Odiava pensar na hipótese de ter que transformar sua noite de descanso numa tortura semelhante a que tinha todos os dias durante o horário de trabalho. No entanto, odiava ainda mais dar a ela a oportunidade de classificá-lo como um chato que vivia enclausurado em casa.

Aceitou o convite.

Encontraram-se num bar ele, ela e uns conhecidos. Pediram umas cervejas e começaram a conversar. Odiava ter de escutar seus comentários fúteis. Odiava a forma irônica com que defendia seus argumentos, quase que desmoralizando seus parceiros de conversa. Odiava o sorriso entreaberto de satisfação que manifestava após cada colocação bem sucedida.

Entediado, tentou puxar assunto com os outros colegas de mesa, mas não conseguiu. Odiava a forma como ela falava alto e monopolizava as atenções. Tentou deixa-la sem argumentos, ousou questiona-la. Foi vencido. Odiava admitir que ela tinha se mostrado mais esperta que ele. Lhe odiava ainda mais por isso.

Sem ter o que fazer, passou a observá-la, como que tentando encontrar alguma coisa digna de empatia, mesmo apostando com si mesmo que isso era impossível.

Não encontrou.

Odiava o seu cabelo: liso, bicolor e cheio de pontas duplas. Tão opaco quanto os seus olhos negros. Odiava a geometria de seu rosto, que era plano, quase que esquadrinhado numa prancheta. Odiava seu corpo esguio, sem grandes atrativos exceto os seios, cujo tamanho avantajado destoava do resto de seu corpo. Gostava de seios, mas odiava corpos desproporcionais. Odiava a forma com que caminhava, quase que rebolando, numa marcha semi-ritmada que se fosse de outra pessoa talvez que despertasse risos, mas que no caso dela só lhe gerava ainda mais antipatia. Odiava também a forma com que usava as mãos de forma expansiva e escandalosa para gesticular enquanto falava. Só não odiou o fato de constatar que não existia nada nela que não lhe irritasse. Odiaria descobrir que estava errado.

Já em casa, tentou dormir, mas o sono não vinha. A voz chata da colega de trabalho ecoava em sua cabeça como um arranhar de unhas num quadro negro. Odiava lembrar do dia horrível e humilhante que tinha tido graças a ela. Odiava imaginar que teria que encontrá-la novamente pela manhã.

Ódio. Puro e simples ódio.

Perguntou a si mesmo porque ela o incomodava tanto. Sua intolerância transcendia os limites normais que conhecia. Odiava sua personalidade, sua aparência, seus conhecimentos... Sentia-se fraco diante de tanta repulsa.

Refletiu, refletiu e refletiu.

Concluiu que nunca tinha tido um sentimento tão forte, mesmo ruim, por ninguém antes. Odiá-la, de certa forma, dava um sentido a sua vida.

Devia ser amor.

Namoraram, casaram-se e tiveram três filhos... Mas ele continuou odiando-a secretamente durante todos aqueles anos. Odiava sua comida, odiava o sexo com ela, odiava acordar ao seu lado todos os dias, odiava ver a forma como ela educava os filhos, odiava ouvir suas histórias, odiava dividir um mesmo teto com ela...

E, acima de tudo: odiava admitir, mas faziam um belo casal.

Farsante 1

À pedido de algumas de minhas fervorosas e histéricas fãs (a Ju, a Anna e a Bia, mais precisamente), venho por meio desta postagem publicar dois dos momentos mais constrangedores de minha vida: minhas aventuras no ramo da atuação.

No ano passado tivemos uma atividade na faculdade que se consistia na elaboração de uma história que deveria ser interpretada. Uma espécie de “novelinha”, bem simples, com o objetivo teórico de exercitarmos a linguagem áudio-visual. Já nesse ano, tivemos a “simples” tarefa de produzir um curta-metragem. Olhando assim parece fácil, né? Vão tentar fazer um pra vocês verem o que é bom pra tosse...

E, nessas duas oportunidades, adivinhem pra quem sobrou a tarefa de “pagar o king-kong”? Se você pensou neste blogueiro charlatão, acertou em cheio.

Eu morro de vergonha de aparecer em frente às câmeras. Para se ter uma idéia, sou o fotógrafo oficial da família, tamanho o meu pavor em dar as caras. Sendo assim, deve ser fácil para vocês entenderem os motivos de minha resistência em mostrar isso.

Eu sei que vou me arrepender disso, mas postarei o primeiro vídeo (a historinha) hoje e o segundo quando conseguir “upar” o curta-metragem (o arquivo é grande e minha internet funciona movida à carvão).

A sinopse é simples: um homem embriagado (entenda-se como um bêbado caindo pelas paredes) tenta abrir a porta de casa. Performance digna de Framboesa de Ouro.

Ah sim: o aspecto deprimente e mulambento do bêbado não faz parte do personagem. É que eu geralmente sou assim...

Enfim: divirtam-se... Ou não!


P.s.: satisfeitas agora, meninas? Hunf!!

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Essas mulheres incríveis, e suas conversas maravilhosas

Eu tenho o ótimo hábito (ou péssimo, depende do ponto de vista) de ouvir a conversa alheia. É um negócio meio involuntário, mas que proporciona para nós, ouvintes atentos, momentos memoráveis.

Mesmo assim, tem certos diálogos que você só ouve numa semana de São Paulo Fashion Week...

***

-Menina do céu... Você viu o desfile da Gisele?

-Gisele?

-A Bündchen!

-A Magrela?

-Essa mesmo.

-O que é que tem?

-Ela só entrou duas vezes na passarela.

-Sério?

-E ganhou uma fortuna.

-Poxa vida.

-Acredita nisso?

-Ô... Mas ela merece.

-Nada!

-Porque não?

-Tudo fachada.

-Jura?

-Sim.

-Acho que não, hein?

-Te garanto.

-Ela é linda.

-Tudo plástica!

-Tá brincando?

-Te juro. Sabe o nariz?

-O que é que tem?

-Mandou empinar.

-Não pode ser.

-Tô te falando...

-E o olho?

-Lente!

-Putz!

-Até o cílio é postiço.

-Me nego a acreditar!

-Tenho fontes, menina. Aquela ali, se chacoalhar, cai tudo. Se bobear até o cabelo é peruca!

-Gente do céu... To bege!

-Pois é.

-Mas ela tem um corpão.

-Tudo no bisturi minha filha, no bisturi!

-Ah? Pare!

-Família rica. Foi pra faca ainda menina.Gordinha, vesga e orelhuda. Mexeram em tudo. Quase construída em laboratório.

-Mas eu ouvi falar que ela veio de família humilde.

-Tudo boato.

-Até o peitão é fabricado?

-Lógico. Aquela ali tem silicone até na panturrilha.

-Mas eu ouvi falar que os seios dela eram naturais.

-Mentira.

-Tem certeza?

-Tudo marketing!

-Poxa vida... Até o peito?

-Pra você ver...

-E pensar que eu achava ela um modelo de beleza nacional.

-Iiii minha filha: Deus é perfeito, mas tem coisas que só o Pitanguy consegue fazer.

-Esse mundo tá perdido, gente.

-Ô se tá. Não dá pra viver seguindo esse padrão de beleza fútil que é imposto pela sociedade.

-Verdade. Quer um gole da minha Coca?

-É light?

-Lógico!

-Então eu quero.

domingo, 8 de junho de 2008

Histórias insólitas de um dia dos namorados qualquer

Depois de muito refletir, a Tânia chegou a uma decisão: não daria nenhum presente pro Josué no dia dos namorados.

Não, eles não estavam brigados. Explica-se:

A Tânia foi arrebatada pelas opiniões polêmicas e o jeitão sério de falar do Josué. O Josué ficou fascinado pelo olhar atento e a candura inocente da Tânia. Não demorou muito, e eles engataram um romance que os amigos de ambos classificaram como “improvável”. Ela, uma consumista desenfreada. Ele, um idealista, com fortes inclinações ao socialismo.

Mas contrariando todas as apostas, três anos já tinham se passado, e nada do romance enfraquecer. Era uma dupla estranha, mas feliz.

No primeiro dia dos namorados que passaram juntos, ela fez questão de comprar-lhe um belo presente: um relógio, lindíssimo, que tinha lhe consumido quase quatro meses de economia do salário. Era caro, mas segundo ela o investimento valia a pena. Amava o Josué de verdade.

Ele não lhe deu absolutamente nada. Agradeceu, mas argumentou que o dia dos namorados não passava de uma data feita para os comerciantes lucrarem. Que toda aquela aura de romantismo espalhada pela mídia nada mais era do que uma forma deslavada de manipular a classe trabalhadora, obrigando-a a consumir ainda mais. Amava ela, mas não poderia ir contra seus próprios pontos de vista.

A Tânia, apesar de um pouco desapontada, entendeu. Sabia que estava sujeita a situações como aquela. Mesmo assim, no ano seguinte, repetiu o gesto de lhe dar um presente na data. Ele novamente agradeceu, e fez o mesmo discurso, desculpando-se por não lhe dar nada e justificando sua atitude como uma forma de protesto.

No ano seguinte a Tânia resolveu aderir. Era no mínimo um desrespeito de sua parte ir contra os preceitos filosóficos do homem que amava. Se ele achava o dia dos namorados uma data criada com o único objetivo de influenciar o consumismo, teria o seu apoio naquele ano. Ia provar de uma vez por todas que ela entendia o seu namorado.

Mas, ele não entendeu. Quando a Tânia disse que naquele ano não lhe daria nenhum presente, o Josué protestou.

-Poxa amor... Eu achei que você gostava de mim!

-Ué... Você sempre me falou que o dia dos namorados era uma besteira, uma data criada pelos capitalistas para influenciar o consumismo. Só resolvi seguir os seus pontos de vista.

-Mas esses são os meus pontos de vista, não os seus.

-Mas Josué...

-Me deixa sozinho, vai. Por favor.

A Tânia, completamente perdida com a situação, atendeu o pedido do namorado. Quem sabe depois de um tempo a sós ele colocasse a cabeça o lugar.

O Josué, sozinho, cochichava para si mesmo, reflexivo:

-Que traição meu Deus, que traição!

Homens... Quem entende?


***

25 anos de casamento e eles, a Nilma e o Haroldo, nunca tinham deixado de se presentear no dia dos namorados. É verdade que a paixão tinha esfriado um pouco (para não dizer muito) nos últimos tempos, mas aquele gesto de carinho continuava sagrado.

Só que naquele ano algo deu errado.

-Toma amor... É pouquinho mas é de coração.

-Ô Haroldo... Brigada.

-O que é isso, imagina!

Enquanto a Nilma abria o presente, um pacote vermelho cuidadosamente embrulhado, o Haroldo se deu conta do erro terrível que tinha cometido. Aquele não era o embrulho do suéter tamanho GG que tinha comprado no brechó da esquina, mas era...

-Amor?! Uma lingerie??

-Éééé... Sim! Uma lingerie! Gostou?

-Mas Haroldo... Faz quase 15 anos que eu não uso uma dessas.

-Pois é. Mas eu... Eu... Eu achei que seria legal fazer isso, sabe? Para relembrar os velhos tempos!

-Mas ela é muito... Sei lá... Ousada! Isso daqui é totalmente transparente, e faz pelo menos cinco anos em que a gente só transa no escuro, que é para não termos, segundo você mesmo, uma visão desagradável. E o que são esses zíperes aqui? É no mínimo estranho uma mulher da minha idade usar uma coisa dessas.

-Não diga isso. Você está... Super em forma!

A Nilma estava desconfiada.

-Tá, ok. Mas você não acha que ela vai ficar um pouquinho apertada?

-Ah... Imagina! Acho que serve sim.

-Haroldo: eu não conseguiria entrar numa dessas nem antes da gente ter se cassado, quanto mais agora. É muito pequena para mim...

-Lógico que não. É que o... O... O modelo dela é assim mesmo, é feita pra ficar bem colada no corpo. Para realçar suas “curvas”.

-Curvas? Eu vou ficar parecendo uma ogiva nuclear. Não dá pra entrar! É fisicamente impossível.

-Sério? Bem, devo ter me confundido com o tamanho. Você sabe como eu sou ruim com essas coisas.

-Haroldo, fala a verdade: esse presente não era para mim, não é?

Ele fez cara de ofendido.

-Como assim? Como é que você tem coragem de insinuar uma coisa dessas Nilma? Ô Nilma... É esse o juízo que você faz de mim?

-Não sei. Sinceramente não sei. Eu achei que o homem que estava casado comigo a tanto tempo iria no mínimo deduzir que eu não entraria numa lingerie vermelha tamanho M desde a década de 80.

-Ok, eu errei. Desculpe. Deve ter sido um lapso momentâneo.

-Sei...

-Um homem apaixonado não pode se confundir de vez em quando, hein? É crime querer agradar a própria esposa, tentar reascender a chama do amor que está se apagando cada dia mais?

A Nilma resolveu relevar a situação. Afinal de contas, o Haroldo era o Haroldo.

-Ok Haroldo, ok. Obrigado pelo presente. Mas eu vou ter que ir trocar isso na loja.

-Tá bom. Sem problemas amor.

O Haroldo suspirou aliviado, mas agora tinha novos problemas. Teria que explicar pra Manoela, a verdadeira dona da lingerie, que ela teria que esperar um pouco mais para receber o seu presente. Isso sem contar que a partir de agora, todas as suas supostas saídas com os amigos seriam supervisionadas de perto pela dona Nilma. Todo cuidado seria pouco.

Mas o pior nem era isso. Chato mesmo seria ter que observar a patroa na lingerie que ele tinha lhe dado por engano. Mas ele ainda tinha esperança:

-Quem sabe, se eu sugerir, eu convença ela a trocar a lingerie por um chambre ou umas pantufas?

***

-Uma batedeira?

-Ué, não gostou?

-Claro que não!

-Mas a vendedora me garantiu que era a melhor que tinha. Ela tem quatro velocidades diferentes e...

-Eu lá tenho cara de quem gosta de receber eletrodomésticos num dia dos namorados, Armando?

-Mas veja bem: é um item doméstico importante.

-Essa não é uma data pra isso. E nós somos namorados. A gente nem vive junto. Pra que cargas d’água eu vou usar uma batedeira? Eu nem pudim de caixinha sei preparar!

-Eu ia te comprar um vestido, mas sei lá... Achei que você ia gostar da batedeira!

-Pelo amor de Deus, né Armando? Vê lá se isso é coisa que se dê de presente.

-Mas dá pra trocar. Se você quiser, a moça falou que você pode pegar um liquidificador, um ferro de passar ou um espremedor de laranjas em troca.

-Puta que pariu Armando!

-Que foi que disse?

-Você não tem noção nenhuma, não é?

-Desculpe. É que eu fiquei nervoso. É o nosso primeiro dia dos namorados juntos. Eu sou péssimo em dar presentes. Fiquei inseguro. Achei que você ia gostar.

-Ok, desculpe. Eu sei que você não fez por mal. Homem sempre é, sem ofensa, meio ignorante pra presentear mulher.

-É, eu sei. Desculpe. Prometo que vou comprar alguma coisa do seu agrado.

-Não precisa.

-Precisa sim, eu insisto. É o nosso primeiro dia dos namorados juntos, tenho que caprichar.

-Você que sabe.

-Imagina, faço questão. A batedeira eu dou pra mim mãe, sei lá.

-Então tá... Ah sim: toma o seu presente. Feliz dia dos namorados!

-Ô amor, não precisava...

-Lógico que precisava.

-Hehehe. Obrigado mesmo. Vamos ver o que é...

-Algum palpite?

-Não sei. Pelo tamanho do pacote, pequenininho, deve ser alguma coisa cara.

-Mais ou menos.

-Deve ser um... Um... Ah... Puxa... Um par de meias...

-E então? Gostou??

-Ô!

-Pois é... Tinha certeza que você ia gostar. É de lycra.

-Sério? Bacana...

-E então? Não vai experimentar?

-Não precisa não... Tenho certeza que vai servir.

-Que foi? Você parece tão desanimado.

-Não, não... Impressão sua.

-Já sei: deve estar chateado por não ter acertado o presente para mim. Não fica assim amor... Nem todo mundo sabe escolher algo bacana. Mas isso não quer dizer nada. Nem todos são tão bons nisso quanto eu.

O Arnaldo deu um sorriso amarelo. Pensou em dizer o que sentia, mas deu de ombros, afinal de contas, coitada, ela certamente não agüentaria a verdade. É como dizem: "os grandes romances não são feitos pelas declarações de amor proclamadas aos quatro ventos, e sim pelos impropérios guardados a sete chaves."

-Pois é amor... Pois é!

E viveram felizes para sempre.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Feio

Sou feio. Ponto. Quando digo isso não existe qualquer tipo de falsa modéstia ou propaganda às avessas. É fato! Meu físico é franzino. Meu rosto é tão proporcional quanto um quadro do Picasso. Meu sorriso já fez dentistas pedirem aposentadoria. Isso para não citar o resto da obra.

Mesmo assim, acreditem, sou feliz. É bem verdade que minha aparência, aliada a minha língua presa e minha timidez mórbida não me fizeram o maior dos “pegadores” da cidade.

E quem disse que isso é ruim? A verdade é que minha lista de namoradas, apesar de não muito extensa é relativamente “caprichada”. Além de belas (isso é meio contraditório, eu sei), todas eram inteligentes, interessantes, bem humoradas e, o melhor de tudo, me conheciam de verdade. Aliás, essa é a grande vantagem de ser feio: as pessoas te valorizam muito mais pelo que você é, pelo que pensa, do que por um rostinho simpático. E tem coisa melhor do que ficar com quem realmente gosta da gente?

Mas não é para me vangloriar de minha feiúra que escrevo aqui.

Não sei se vocês viram por aí, mas nos últimos meses um argentino chamado Gonzalo Otálora, um “trubufu” assumido, apareceu em diversos meios de comunicação defendendo uma proposta um tanto inusitada: segundo ele, as pessoas deveriam pagar impostos por sua beleza.

É claro que a história é uma grande piada, mas o argumento do rapaz é até certo ponto lógico: os belos conseguem quase tudo de uma maneira mais fácil do que um feio consegue. Emprego, por exemplo. Mesmo que os “patrões” não admitam, é muito mais fácil alguém bem apessoado ser contratado do que um pobre feioso qualquer. A menos, é claro, que o emprego em questão diga respeito a uma vaga no “túnel do terror” de algum parque de diversões por aí.

Eu particularmente, sou mais a favor do resto do mundo pagar um imposto por não ter nascido na Argentina, mas aí já é outra história (é brincadeira, gente, é brincadeira...).

De qualquer forma, a história ganhou notoriedade e fez muita gente pensar duas vezes sobre o papel que a aparência tem em nossa sociedade.

Pode não parecer, mas acreditem, ser feio é uma benção.

***

O João, o Gustavo e o Antônio se conheciam a tanto tempo que resolveram abrir um clã (o Gustavo preferia que fosse um”clube”, mas os outros dois argumentaram que “clã” era um termo mais bacana): os “Feiosos Unidos”.

Semanalmente eles se reuniam na casa de um dos integrantes para conversar sobre aquela que era a grande maldição que lhes tinha sido imposta pelo destino: a falta de beleza.

Não, não tratava-se de exagero dos meninos. Eles realmente eram feios. O resto da humanidade era testemunha disso.

Cientes de que seriam alvo fácil diante do olhar crítico da sociedade, sempre sedento por uma boa aparência, resolveram se unir a fim de bolar estratégias de defesa.

Os encontros semanais tinham todo um rigoroso protocolo e uma escala de assuntos, que começava no relato das visões que tinham tido durante a semana das beldades do colégio, e terminava quase que invariavelmente em suspiros ora emocionados, ora desanimados.

-E a Maria?

-Que joelhos, meu Deus, que joelhos!

-E a boca então?!

-Nem me fale da boca, nem me fale...

-Ai, ai...

Mas não se enganem. Apesar de tudo o trio de amigos era feliz. Um tanto inconformado com a “sacanagem” do destino para com eles, é verdade, mas cientes de que ao menos tinham bons olhos para admirar a beleza abundante que lhes faltava (exceto o João, que tinha pouco mais de seis graus de miopia).

Mas dentre todas as similaridades que possuíam uma era ainda mais latente: a inveja que sentiam do Valdir.

O Valdir era o bom partido do colégio. Loiro, olhos azuis, braços fortes, sorriso perfeito... O típico clichê ambulante do tipo de cara que as mulheres admiram. Mas o pior nem era isso. O Valdir era inteligente, tinha uma lábia envolvente e fugia do estereotipo do “bonito/burro”, que de certa forma servia para consolar os meninos que vez por outra argumentavam que “fulano pode até ser bonitinho, mas é uma anta!”.

A prova inexorável do sucesso do Valdir para com a mulherada podia ser medida em números: todas as garotas que já tinham povoado os sonhos dos integrantes do clã dos “Feiosos Unidos”, invariavelmente já tinham passado pelas mãos do rival. E olha que a lista não era pequena.

Para eles, o Valdir era a prova definitiva da injustiça divina, dá má distribuição de renda estética empregada pelo Todo Poderoso. O Antônio, mais radical, chegou até a cogitar a possibilidade de mudar o nome do clã para “Feiosos Unidos Contra o Valdir”, mas não teve aprovação.

O fato é que, conformados, e já as vésperas de completarem o colegial, não lhes restava outra alternativa a não ser a de desejar dias melhores no futuro, e mulheres menos exigentes.

Foi então que, certo dia, logo depois de saíram do colégio, o grupo de amigos se deparou com uma cena inusitada: o Valdir, sentado na calçada, chorando copiosamente.

Os meninos se olharam. O que será que estava acontecendo com o cara? O Antônio sugeriu que eles fossem embora de uma vez. O Gustavo, mais diplomático, sugeriu que puxassem papo com o Valdir. O João não tinha opinião formada, faria o decidissem fazer. Depois de uma rápida discussão, concluíram que valia a pena seguir o velho lema de Don Vito, personagem do filme “O Poderoso Chefão”: mantenha seus amigos perto, e seus inimigos mais perto ainda.

Tal qual uma esquadra em formação de ataque, se posicionaram dois a esquerda, e um a direita do Valdir, que continuava a chorar. Sentaram-se.

-Valdir... Tá tudo bem contigo?

O Rapaz levantou a cabeça, enxugou as lágrimas mais pesadas e respondeu num tom amigável.

-Mais ou menos, gente!

-Aconteceu alguma coisa? A gente pode ajudar de algum jeito?

-Acho difícil, mas agradeço de coração a boa vontade de vocês!

O Gustavo insistiu:

-Tem certeza? Se quiser se abrir com alguém nós estamos à disposição.

O Valdir pensou durante algum tempo. Olhar perdido no horizonte.

-Ok pessoal, eu estou precisando mesmo disso. E vocês são pessoas bacanas, eu sei. Além do mais é sempre bom ter uma segunda opinião!

-E uma terceira e uma quarta também – disse o Antônio, que naquela altura já era o mais empolgado com o bate papo.

-Bem... Eu estou chorando é por causa... Putz! É até difícil de falar.

-Coragem, rapaz.

-Eu estou chorando... É por causa de mulher, gente!

O João quase gargalhou. Eles na seca, e é o cara que chora por mulher.

-Mas o que houve?

-Essa história de ficar com tudo quanto é garota que te dá mole... Isso não é vida, entendem?

Os três ficaram quietos. Percebendo que não teria uma resposta, Valdir prosseguiu.

-Passei a vida inteira dando em cima da mulherada, investindo em tudo quanto era “garota gostosa”. E olhem só pra mim. O que foi que eu consegui com isso? Nada!

-Como assim “nada”? Você pegou um monte de mulher e...

-É tudo vazio, sabe? Tá, é bacana ficar com mulheres gatas. É maneiro, é prazeroso... Mas é tudo tão insignificante! Chega uma hora que você cansa de bocas carnudas, de peitos fartos, de bumbuns empinados, de rostos simétricos...

Nessa altura os três garotos quase espumavam pela boca.

-Sabem o que eu realmente queria? Uma mulher inteligente, afetuosa, que gostasse de mim só pelo que eu sou, não por esse meu rosto simpático. Mas eu não consigo. Esse é o problema! As garotas não enxergam além dos meus olhos azuis, e isso é muito frustrante. Eu daria qualquer coisa para achar uma mulher que não quisesse só sexo, que me amasse de verdade. Vocês me entendem, né?

Os três estavam sem ação, quase que hipnotizados pelas palavras do Valdir. Gustavo, o mais lúcido do trio, teve forças para balançar discretamente a cabeça de forma afirmativa. Ainda conseguiu dizer, num tom reflexivo:

-Mulheres... Mulheres...

E completar:

-Mulheres!

-Pois é, amigos. Mulheres. Se elas ao menos me valorizassem pelo que eu penso, não pelo que eu aparento ser...

Comovido, o Valdir abaixou a cabeça e voltou a chorar. Pouco depois, resumiu sua angústia, aos soluços:

-Ser bonito é uma bosta, gente... Uma bosta!

Os três se olharam mais uma vez. Dessa vez, incrédulos com a sorte que repentinamente tinham descoberto possuir.

Quem diria: os feios eram felizes e não sabiam.

Diário de bordo

Sim, cá estou eu de volta.

É estranho, mas toda vez que fico um bom tempo sem postar nada me sinto na obrigação de escrever um texto inteiro só para justificar minha ausência... Como se alguém se importasse.

Pior que tem gente que se importa, e isso é muito legal. Teve gente que chegou a me ligar perguntando se eu estava bem e os motivos do longo tempo sem escrever alguma coisa (né Bia?).

Ok, vamos aos fatos:

Em síntese ando bem atarefado ultimamente. A faculdade anda me tomando um tempo preciso bem como boa parte de minha capacidade intelectual (que, convenhamos, já é bastante limitada). Sabe aqueles dias livres em que tudo o que você quer é entrar em coma, ou, como já disse aqui algumas vezes: “colocar seu cérebro num balde com gelo”? Pois então... Estou passando por uma fase assim.

Mais do que cansaço, o que tem me tirando a paciência é a falta de criatividade que tenho enfrentado, fruto, provavelmente, desse excesso de atividades. A coisa mais original que fiz nas últimas semanas foi ter usado minha cueca do avesso durante um dia inteiro... E o olha que nem foi de propósito!

Ok, já falei demais.

De qualquer forma, venho aqui para agradecer a todas as pessoas que passam por aqui de vez em quando e perdem seu tempo lendo minhas abobrinhas. A vocês, o meu sincero muito obrigado.

Se eu voltar a sumir, não se preocupem. Um dia eu volto. Ou não.

Beijo no cérebro!

domingo, 27 de abril de 2008

Terremoto

Nesta última semana o país foi chacoalhado (com trocadilho, por favor) pela notícia de um terremoto de 5,2 graus na escala Richter, cujo epicentro do abalo foi a cerca de 270 quilômetros da costa brasileira. Mesmo relativamente longe de "terra firme", o fenômeno foi sentido em pelos menos quatro Estados brasileiros, incluindo o meu, o aprazível Paraná. Um susto e tanto para quem achava que o maior risco de catástrofe que atormentava nosso país era o caráter e a honestidade de nossos políticos.

Não há registro de grandes estragos nem de vítimas fatais, já que o principal feito do tremor, segundo relatos dados à mídia do país inteiro, foi fazer com que os mais idosos pensassem que estavam tendo uma crise de pressão ou de labirintite.

Aqui em Curitiba, apenas alguns bairros sentiram os tremores, e mesmo assim, só em edifícios mais altos. Eu por exemplo, que no momento estava em aula, não senti absolutamente nada... Quer dizer: senti sono, cansaço e fome, coisas que, acredito eu, não dependem da ocorrência de abalos sísmicos para acontecer.

De qualquer forma, não deixa de ser interessante constatar um fato: eu sobrevivi a um terremoto. O sexto maior da história do nosso País. Um dia direi isso para o meu neto e ele provavelmente vai pensar que eu sou uma versão real do John Mclane, Magaiver, Jack Bauer ou Chuck Norris... Isso se ele ouvir falar de algum deles até lá.

Mas o assunto nem é esse. Juro que ouvi dúzias de relatos de amigos e colegas falando que presenciaram todo tipo de histeria coletiva em função do ocorrido: desde gente se recusando a sair debaixo de mesas, até choro desesperado.

Isso nos leva a refletir sobre como um determinado fato pode ter influências distintas de pessoa para pessoa.

Dá até pra imaginar certas coisas:

***

-Alô?

-Alô! Bianca?

-Sim?

-É o Rafael!

-Rafael?

-Sim... Lembra de mim?

-Ai! Desculpe... Deve ser o cansaço! Não estou lembrando.

-Ah não? Fui seu colega no colegial!

-Colegial?

-É! Colegial! Você sabe... O ensino médio, antigo segundo grau!

-Sim, isso eu sei. Mas isso foi há quase 15 anos atrás!

-Pois é... E então, lembrou de mim?

-Bem... Rafael, né? Deixa eu pensar um pouco.

-Um loirinho, baixinho.

-Olha, sinceramente... Não me vem nada na cabeça!

-Ah... Bem... Fazer o que, né?

-Desculpe mesmo. Deve ser a idade!

-Imagina! Você está super conservada. A idade te fez bem.

-Como?

-A idade te fez bem. Você está linda.

-Como é que você sabe disso?

-Do que?

-Que eu “estou linda”? Que eu saiba a gente não se vê faz uns 15 anos!

-Bem... É que eu ando te observando, sabe?

-Como é que é? Me observando?

-Sim! Eu sei muita coisa sobre você!

-Ai Meu Deus... O que você quer de mim, hein?

-Nada, não se preocupe. É que eu sempre te admirei... Mas não tinha coragem de admitir! Mesmo assim, não pude deixar de me manter interado sobre você durante todos esses anos.

-Você está me assustando!

-Não! Por favor, não faça isso. Não se assuste!

-Como é que você quer que eu fique calma? Um cara me liga dizendo que anda me observando secretamente nos últimos 15 anos e você quer que eu fique calma?

-Eu sei que é chato! Eu não pretendia revelar isso... Mas é que eu tive um sinal.

-Sinal?

-Sim! O terremoto!

-O que é que tem o terremoto?

-Ora: ele foi um sinal! Um aviso dos céus de que a gente tem que aproveitar a vida. Você já viu um terremoto antes no Brasil? Isso é a prova de que tudo está mudando! Que a vida é curta demais para se negar o que a gente sente.

-Você está louco!

-Não! Não estou. Estava pensando em você quando tudo aconteceu. Pensei comigo mesmo: “Poxa vida... De que me adianta amar uma mulher se ela não sabe disso? Daqui a pouco acontece uma tragédia de verdade, tipo um terremoto forte, um furacão, uma erupção vulcânica de grandes proporções e todo o amor que eu cultivei não vai ter valido de nada.”

-Para começar: o Brasil não tem nenhum vulcão!

-Pode começar a ter. Já pensou nisso? Tudo é possível. Foi pensando nisso, no quanto a nossa vida é vulnerável diante do poder na natureza, é que eu resolvi tomar coragem e te ligar.

-Escuta Roger...

-Rafael!

-Desculpe... Rafael: eu nem lembro direito de você! Como é que você quer que aconteça alguma coisa entre a gente?

-Eu já pensei em tudo! Vamos sair para beber alguma coisa? Um copo de leite, sei lá! Daí, a gente bota o papo dos 15 anos em dia e você pode me conhecer de verdade.

-Eu sou casada!

-Eu sei! Mas o seu marido é um chato, com todo o respeito. Acho que se você me conhecesse de verdade, iria largar ele.

-Pelo amor de Deus... Eu amo ele! Tenho filhos com ele! Como é que você acha que eu vou largar tudo pra ficar com um cara que eu nem lembro que passou pela minha vida?

-Eu sabia que você ia agir assim. Mas com o tempo você vai me dar razão! Eu vou esperar por você o tempo que for preciso! Aquele tremor não foi à toa.

-É mais fácil acontecer outro terremoto do que eu dar bola para um maluco como você!

-Pode falar, pode falar... Quer saber? No fundo no fundo você lembra quem eu sou. Só está se fazendo de difícil!

-Eu não acredito no que eu estou ouvindo!

-Eu estou certo não estou? Pode dizer “eu te amo!”. Vamos lá, não negue seus sentimentos, estou esperando. A natureza quer nos unir meu docinho!

-Tchau Roger...

-É Rafael... Tá ouvindo? Rafael! Alô? Alô??

domingo, 13 de abril de 2008

Status

Abre aspas. Uma das melhores definições não oficiais que eu já li sobre uma determinada coisa é a da palavra status, feita por algum anônimo. Ele é mais ou menos assim: “Status é comprar uma coisa que você não quer, com um dinheiro que você não tem, para mostrar para gente que você não gosta, uma pessoa que você não é”. Se alguém descobrir quem escreveu isso, favor avisar que eu dei-lhe os cumprimentos pela frase. Posto isso, vamos à história propriamente dita.

***

Escritório. Amigos reunidos. Celulares em punho. Assunto em discussão: toques dos aparelhinhos e o eventual sucesso que fazem com quem por ventura ouvisse o som.

-O meu toca Funk. Sabe o “Créu”? Então... A mulherada gosta!

-Bacana...

-O meu é Beatles. “Love Me Do”. Sabem qual? É só tocar, que o pessoal pede para repetir.

-Ah... Beatles é Beatles, né?

-É sim! Não tem quem não goste.

-Já o meu toca Beethoven. A nona sinfonia. Já deixei de atender a ligação uma porção de vezes porque tenho dó de interromper.

-Faz bem. Música assim a gente não pode parar.

-Concordo.

-O meu tem punk, hardcore, metal... Toca de tudo! Mudo o toque de acordo com o meu humor.

-Ah é? E hoje? Que toque você escolheu?

-Wando!

-Xiiii...

-Eu coloco uma música diferente para cada pessoa. Assim já sei quem está ligando, antes de olhar pro identificador de chamadas.

-Sério? Então me esclareça uma coisa: ontem eu ouvi que o seu celular tocou a música tema daquele filme... “Jurassic Park”! Desculpe perguntar, mas quem era?

-Minha sogra!

-Ah Sim! Faz todo sentido!

-E você Jadilson? Seu celular toca o quê?

-Ah, vocês sabem: aquele tradicional!

-Como assim “tradicional”? Qual é?

-Aquele... “trim, trim”!

-“Trim, trim”?

-É! Igual todo telefone antigo fazia!

O pessoal se entreolhou.

-Porra Jadilson! Isso lá é celular que se apresente?

-Ué? Porque?

-Ah Jadilson! Faça-me o favor! Vê se toma vergonha nessa cara e compra um aparelho decente!

O Jadilson não entendeu a súbita mudança do comportamento dos colegas para com ele. Tentou esclarecer os motivos, mas tudo o que ouviu foi que seu status dentro do grupo estava em baixa.

Também, quem mandou não caprichar no celular?

Nomes

Certo dia alguém olhou para sua cara, na época diminuta, e concluiu que você, aquele joelho com olhos, se chamaria...

Sim, o nome é uma das muitas coisas da vida que nós simplesmente não podemos escolher. Pelo menos não, sem um bom advogado. De fato, se houvesse justiça, jamais teríamos nossas alcunhas escolhidas por nossos pais. Eles nos chamariam por codinomes como “Filho Número 1”, “Fulaninho”, “Coisinha”, ou, em último caso, o já tradicional “Ei, você!”, até que tivéssemos discernimento e sabedoria suficientes para que pudéssemos escolher nossas próprias denominações. Ou seja: lá pelos 50 anos de idade.

Que fique claro: não digo isso por insatisfação própria. Sou um feliz proprietário de um nome composto: José Luiz , vulgo Zé. Não poderia existir melhor alcunha para me definir. Afinal de contas, apesar de eu ser fisicamente parecido com o rapaz, acho que “Brad Pitt” não tem muito a ver com o meu estilo.

Mas volto a minha defesa original: existem nomes que simplesmente não deveriam existir. Não sem o consentimento do dono, o pobre infeliz que tem que sofrer com a conseqüência da mente inventiva dos pais. Sim, eu disse sofrer.

Acreditem ou não (se eu fosse vocês, não acreditaria), existem estudiosos ao redor do mundo que analisam o papel social e a influência psicossomática que um determinado nome tem sobre seu dono. Para facilitar o entendimento do grau de influência de cada tipo de estirpe, estes cientistas criaram categorias específicas, as quais tentarei exemplificar adiante.

Vou apresentar apenas alguns dos gêneros existentes. A variedade é infinita, não teria como esmiuçar tudo. Mesmo assim, dá pra ter uma idéia das principais.

Para começar, vamos tratar daquele que é considerado o caso mais típico de todos: o nome feio, ou, na denominação cientifica, a “nomenclatura exótica”.

***

A Joana estava em polvorosa com a novidade. Para conta-la, reuniu as duas facções da família (a dela e a do recém adquirido marido) e declarou:

-Estou grávida!

A emoção foi enorme. A família inteira entrou em festa com a notícia. O Célio, marido da Joana, chorava copiosamente de felicidade em função da novidade recém contata pela esposa. O novo rebento estava à caminho.

Depois que os ânimos já estavam mais controlados, uma pergunta foi inevitável:

-E qual o nome que vocês pretendem dar à criança?

-Se for menina, vai ser Marina!

Todos suspiraram. Era uma bela escolha, um lindo nome.

-Adorei! – Disse a vó.

-Pois é... E se for Menino será Nabucodonosor!

Silêncio. Boa parte dos presentes ficou sem reação diante da revelação. Um tio da Joana chegou a gargalhar, achando que tratava-se de uma piada.

-Hahahaha... Essa minha sobrinha é uma piadista!

Mas não era gozação. A Joana estava falando sério, e parecia ter o consentimento do marido. O resto da família, escandalizada, tentou intervir... Com jeitinho:

-Ahhhh... Bacana! Mas, assim, só para garantir, você não acha que esse vai ser um nome meio... Como é que eu posso dizer? Meio exótico demais para uma criança?

A Joana pensou um pouco.

-Não... Acho que não!

-Mas Joaninha, pense bem: como é que você acha que os coleguinhas vão chama-lo no colégio? Nabuconodosor é um nome meio difícil pra uma criança pronunciar. Eu mesma estou me enrolando!

-Imagina tia! Já pensei em tudo. Eles vão chama-lo de “Nabu”! Vai ser o apelido dele!

O vô, que até então observava a tudo sem se manifestar protestou pela primeira vez:

-Ótimo! Meu neto agora vai ter apelido de raiz comestível!

-Vai ser “Nabu”, não “Nabo”!

-E você acha que alguém vai notar a diferença? Vocês não vão botar esse nome na criança de jeito nenhum!

-Mas vô: é um nome bíblico!

-Pedro, José e João também são... É só mudar!

A Joana protestou:

-O filho é meu, sendo assim, ponho o nome que eu quiser!

Guerra na família. Protestos por todos os lados. No fim da briga chegou-se a conclusão de que ninguém iria interferir na escolha dos pais, desde que eles tivessem o bom senso de tornar o nome composto, acrescentando mais uma alcunha para popularizar mais o nome do menino. Algo como “João Nabuconodosor” ou “Júlio Nabuconodosor”.

Mesmo assim, depois daquele dia, a torcida geral foi pelo nascimento de uma menina.

***

Outra categoria são a dos pais que resolveram homenagear seus ídolos.

***

O rapaz chega na portaria de um prédio qualquer. Vai visitar alguém no 3º andar. O porteiro pede para ele preencher uma ficha.

-Preciso do seu nome, por favor.

-Martin Luther King de Almeida!

-Hahahahaha... Muito bom! O Senhor é um cara bem humorado, né? Deu pra perceber...

-Acho que sim! Hehehe

-Pois é! Gosto de gente assim, gente que costuma fazer piada.

-Ah... Legal! Eu também!

-Bacana... Mas falando sério agora: qual seu nome?

-Martin Luther King de Almeida.

O porteiro, repentinamente, fica sem ação.

-Você estava falando sério? Esse é o seu nome?

-Sim!

-Pelo amor de Deus, me desculpe! Achei que...

-Não, imagina! Não precisa se desculpar! Acontece o tempo todo. Eu não ligo. Até acho engraçado, sabe? Meu pai é muito fã daquele período histórico. Resolveu homenagear o Martin no nome do filho.

-Entendo!

-No fim das contas não deixa de ser um orgulho ter o nome dele, né? Foi um grande homem!

-Poxa vida! Mesmo assim, me perdôe...

-O que é isso! Tá perdoado.

-Que bom, que bom. Mas, assine aqui, por favor!

-Ok!

-Ótimo! Pode ir...

-Muito obrigado senhor... Senhor...

-Pode me chamar de você! Me chamo Tonico... Tonico Tinoco da Silva!

-Ah... Muito prazer!

-O prazer é meu senhor Martin!

-Seu pai gostava de música sertaneja?

-Como é que você adivinhou?

***

Outra categoria é a dos nomes constrangedores... Nem tanto para o dono, mas principalmente para quem é obrigado a pronunciá-lo.

***

O chefe do Luiz chama-se André. André Paixão. Como já existiam outras dúzias de André’s na empresa, habituaram-se a chama-lo de Paixão.

Pegava mal, todo mundo sabia. Mas com o tempo ficaram tão acostumados que passaram a ignorar o duplo sentido intrínseco existente.

Mesmo assim, o Luiz não contava com o mal entendido:

-Alô? ... Fala Paixão! ... Ah, ok! Pode deixar que eu passo lá! ... Meu carro tá na oficina, mas eu pego o da minha esposa! ... Ok, paixão! ... Deixa comigo paixão! ... Até daqui a pouco! Tchau!

Maria, a esposa do Luiz, que ouvia a tudo num cantinho escondida, interpretou errado o conteúdo da ligação.

-Seu pilantra!

-Oi amo...

-Amor o cacete, desgraçado! Pensa que eu não ouvi você conversando com uma vadia no telefone?!

-Não é nada disso que você está pensando...

-Pensa que eu sou burra? E o pior é que você estava chamando ela de “paixão”! Como é que você teve coragem? E ia levar a piranha pra passear no meu carro!

-Você está enganada!

-Eu não sou burra, Luiz! Burro é você que achou que ia me enganar por muito tempo!

O Luiz tentou se explicar:

-Escuta amor... Você não está entendendo! O Paixão é homem!

Depois disso a Maria, que quase desmaiou com a revelação, pegou as malas e saiu de casa antes que o Luiz conseguisse desfazer o equívoco.

O assunto foi esclarecido, mas a história acabou se espalhando, inclusive dentro da empresa. Antes de conhecer todos os detalhes, o Paixão, chefe do Luiz, chegou a dar uma bronca:

-Porra Luiz! Como é que você apronta uma dessa com sua mulher? Aqui a gente valoriza a família!

***

E, para terminar com esta analise científica semi-pormenorizada da influência social das alcunhas pessoais na vida dos seres humanos, abordaremos uma das categorias mais interessantes: os nomes perigosos. Sim, perigosos. Aquele cujos portadores correm riscos apenas por pronunciá-los.

Esse é o caso do Abuda.

***

O Abuda voltava para casa, altas horas da noite, quando percebeu uma confusão próxima dali. Ouviu discussão, xingamentos, e logo viu uma correria. Não demorou muito e uma viatura policial chegou ao local.

Os policiais foram informados que um baderneiro puxou briga com alguns transeuntes, agrediu um deles, e logo depois tentou fugir. A descrição era de um rapaz jovem, com cerca de 25 anos, alto, cabelos negros trajando uma camisa branca e uma calça verde. Por ironia do destino, essa descrição batia exatamente com a do Abuda, que não tinha nada a ver com a história, mesmo passando ali por perto.

Vendo que a descrição do suspeito era exatamente igual com a do rapaz que perambulava pela rua, o policial não teve dúvidas: desceu correndo da viatura e mandou o rapaz levar as mãos à cabeça.

-Ei, você! Mão na cabeça, mão na cabeça!

O pobre Abuda, assustado, atendeu prontamente a ordem.

-Ok, ok. Vamos com calma.

-Calma o cacete vagabundo, calma o cacete!

-Desculpe... Foi mal!

-Cale a boca! Só fala quando eu mandar!

Nessas alturas o pobre rapaz já estava apavorado. Sabia que não tinha feito nada de errado, mas era óbvio que tinha sido confundido com alguém. O policial estava sendo truculento demais se não tivesse algum motivo específico que o levasse a crer que ele tinha feito alguma coisa errada.

-Qual que é o teu nome?

-O quê?

-Teu nome!

-Nome? Abuda! Abuda senhor!

-Como é que é? Minha bunda? Tá me xingando vagabundo?

-Não! Meu nome é Abu...

-Tu tá preso engraçadinho!

-Mas eu...

-Cale a sua boca suja ou vai tomar bordoada.

Na delegacia, o Abuda foi indiciado e preso. A acusação: desacato a autoridade. Segundo o relato do policial ele teria dito palavras obscenas ao ser questionado sobre seu nome.

No fim das contas, tudo acabou bem. A situação foi esclarecida depois da chegada dos advogados.

Mesmo assim, o Abuda estava inconformado:

-Puta que pariu! Meu nome ainda me mata!