segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Confissões

O Carlos, o Vitor, o Alberto e o Noronha tinham chegado num acordo: iriam revelar ali, naquela mesa de bar, seus maiores segredos uns aos outros. Já eram amigos a pelo menos duas décadas, sendo assim, na visão deles, nada mais justo do que colocar na roda aqueles fatos que sempre tentaram esconder do resto do mundo. Seria a prova definitiva da união daqueles quatro “quase irmãos”. Prova de que confiavam uns nos outros a tal ponto, que teriam coragem de expor ali seus maiores dramas e frustrações. Depois disso, definitivamente, ninguém poderia se atrever a questionar a amizade do bando.

Foi o Vitor que, motivado pelo dever cívico de fortalecer a união do grupo e pela décima segunda rodada de cerveja, teve a idéia de realizar a sessão de confissões. Os outros três integrantes da mesa, visivelmente comovidos com a iniciativa e com o alto nível etílico que lhes guiava, concordaram prontamente. O único que questionou um pouco a empreitada foi o Noronha, sem sucesso.

Como autor da idéia, o Vitor tomou a palavra.

-Pois é pessoal! Vou começar... todo mundo me ouvindo?

O Carlos e o Noronha balançaram a cabeça afirmativamente. O Alberto só teve forças para emitir um soluço, o que no consenso dos demais significava um “sim”.

-Ok... lá vou eu!

O resto do grupo aplaudiu a iniciativa do Vitor. Todos os tipos de apoio e manifestações de incentivo eram válidos naquele momento.

-Bem... vocês devem saber que eu sempre fui um defensor da boa música, não é? Sempre fiz questão de escutar tudo aquílo que existe de melhor, seja no rock, na MPB, no jazz, no soul, nos grandes compositores eruditos...

Todos concordaram. De fato ninguém entendia melhor de boa música no grupo do que o Vitor. E ele realmente só ouvia o que existia de melhor. Chegou ao cúmulo de convidar todos os colegas de colégio da filha para uma festa de aniversário em sua casa, e pôr para tocar a nona sinfonia de Beethoven. A festa foi um fracasso, para desespero da filha que jurou nunca mais permitir que o pai organizasse qualquer evento em seu nome.

-Pois bem: admito, com muita, mas muita vergonha, que nos últimos dias eu tenho ouvido uma banda meio... meio...

-Coragem Vitinho! – Bradou o Carlos!

-Obrigado! Pois então: minha filha comprou um CD dessa banda, e pôs pra tocar o dia inteiro! No começo eu achei horrível. Mal feito, mal executado, ruim aos ouvidos... mas com o tempo... com o tempo tudo começou a ficar poético, entendem? É como se a música começasse a fazer sentido, e quando eu me vi, eu estava cantarolando ela em todo o canto. Tentei parar. Juro que tentei. Mas não pude, era mais forte que eu. Mais forte!

Silêncio. O resto da mesa ouvia o relato respeitosamente.

-Gente... eu, Vitor de Almeida Barreto, admito: nos últimos tempos, eu tenho ouvido RBD!

-Meu Deus! – Exclamou Carlos.

-Caramba! – Bradou Noronha.

-Hic! – Soluçou Alberto.

-Pois é gente... é triste! Eu sei que é! Mas é tão forte, é um ritmo tão sedutor. Eu tive que continuar. Comprei todos os CD’s e DVD’s, me filiei ao fã clube, decorei todas as músicas... lembram que eu furei naquele dia em que nós tínhamos um jogo marcado? Pois é... eu tinha ido no show deles aqui no Brasil!

-Poxa vida, cara... o caso é sério mesmo!

-É sim! E o pior gente: semana passada, minha filha veio reclamar que eu estava cantando uma das músicas deles alto demais! Que ela não conseguia se concentrar na lição de casa! Imaginem isso! Minha própria filha me repreendendo por eu cantar uma música do RBD!? Isso é demais pra minha cabeça!

-Acontece cara... acontece!

Como forma de reconhecimento pela coragem, o Vitor recebeu uma nova salva de palma dos colegas, ainda mais efusiva, chamando a atenção de todo o resto do bar.

-Obrigado gente! Sabia que podia confiar em vocês! E que isso fique só entre nós, ok?

Todos concordaram. A discrição era parte do acordo. O próximo a pôr seus segredos na roda foi o Carlos:

-Bem... vocês devem se lembrar do gato da dona Filomena. Sabem qual?

O gato em questão, chamado Floquinho, era o mascote dos quatro quando pequenos. Estava junto com eles em todos os momentos: das brincadeiras na rua ao bate papo embaixo da árvore depois de um dia inteiro de traquinagens. Coisa bonita de se ver. A dona Filomena adorava ver o seu gatinho de estimação interagindo com a garotada e não se importava com as tardes inteiras em que ele desaparecia. Sabia que estava em boas mãos, e que invariavelmente no fim do dia, lá estaria ele deitado na varanda, descansando e esperando o jantar. Infelizmente, certo dia, ele não voltou. Sumiu sem deixar pistas. O consenso foi de que ele teria sido roubado por alguém, ou tivesse se perdido. De qualquer forma, todos sentiram muito a falta do bichinho, principalmente a dona Filomena, que dizia nunca mais ter encontrado felino igual.

-Sim, acho que todos lembramos! O Floquinho... nosso velho mascote! O que tem ele?

-Lembram que ele sumiu?

-Sim!

-É claro!

-Hic!

-Pois então... a culpa foi minha! Eu o vendi pra um dos meus tios que mora lá no interior! Ele veio nos visitar e se apaixonou pelo tal gato! Me ofereceu alguns tostões, e eu não pude evitar: acabei vendendo ele!

A confissão era pesada. O Carlos tinha vendido o mascote da turma, um animal que, inclusive, nem era dele.

-Poxa vida!

-Cacete!

-HIC!

-É... eu sei! Isso foi terrível, né? Não acredito que tive coragem de fazer aquílo! Sempre que penso nisso, ainda hoje, fico com a consciência pesada!

-...

-Vocês ficaram quietos! Não engoliram a história do gato, não é? Sabia que não devia ter contado!

-Você há te entender que o caso é grave...

-Você vendeu o gato da dona Filomena, cara! Isso é terrível! A velha quase teve um treco quando percebeu que o gato tinha sumido!

-Hic!

-Eu sei gente, eu sei! Se pudesse voltar no tempo, eu não teria vendido ele... ou pelo menos teria cobrado mais caro! Eu era criança, bobinho. Não tinha idéia do que estava fazendo. Além do mais, vocês prometeram perdoar tudo! Era parte do acordo!

Era verdade. A compreensão também era fundamental para que a rodada de confissões fosse bem sucedida.

-Ok, Carlos... você foi corajoso botando pra fora esse fato! Foi preciso ter muita coragem e confiar muito no grupo! Parabéns!

-Obrigado gente! Vocês não fazem idéia do peso que e tirei das costas!

Efusivos aplausos seguiram a demonstração de coragem explicita protagonizada pelo Carlos.

-Bem... acho que agora, todos concordamos que quem está em melhores condições para fazer a confissão é o Noronha! O Alberto bebeu um pouco demais e...

-Que nada! Eu quero falar agora! – Bradou o Alberto, decidido, na primeira frase completa que ele tinha conseguido formular em horas.

-Ok... manda ver então!

-Olha... eu... eu sou um bosta! Um bosta, gente! Não fui eu que terminei com a Carmem! Foi ela! Eu disse pra todo mundo que eu tinha chutado ela, que tinha enjoado dela... mas não! Foi ela quem terminou comigo! Estava tudo normal, tudo lindo, até que ela chegou em mim, do nada, e falou: “Acabou Alberto...não quero mais você!”

-Nossa!

-Agora eu pergunto: o que foi que eu fiz de errado, hein? Sempre segui as regras, as normas. Sempre tentei ser um bom marido... e daí ela chega e diz que não me quer mais?! O que podemos concluir com isso? Que eu sou um bosta! Um b, o, x, d, t, a, e mais um ç que eu não lembro onde se coloca! Só isso! E o pior, sabem o que é? Eu ainda amo ela! Penso nela toda maldita noite! Choro de saudades feito uma criança, quando deveria estar odiando ela!

O Carlos e o Vitor se assustaram com a reação auto destrutiva do Alberto. Ele que sempre tinha se comportado como um legítimo machão, estava ali, quase aos prantos, admitindo que era submisso a sua ex mulher. O caso da separação, aliás, não estava bem explicado até então. Certo dia ele chegou afirmando que tinha se cansado do casamento, e que, sem motivo nem razão aparente, acabou com tudo. Fez chacota do caso, dando a entender que era areia demais para o caminhãozinho da esposa. Chegou a dizer que a Carmem chorou, berrou e esperneou, mas que nem assim ele tinha se compadecido com os pedidos de uma segunda chance feitos por ela.

-Calma cara... não precisa se auto flagelar!

-Que nada! Eu vivia uma fantasia! Fazendo todo mundo acreditar que eu era um cara durão, um dominador... quando na verdade eu tomei um fora da minha mulher! É deprimente gente, eu sei!

O Carlos e o Vitor consolaram o velho amigo:

-Que nada cara... você mostrou que é macho! Só alguém com muita coragem admitiria isso!

-Verdade! Tu é um exemplo pra todos os homens desse mundo!

-Bota exemplo nisso! Você é quase um herói rapaz! Devia ser saudado em praça pública!

-Verdade!

O Alberto ficou comovido com a atitude dos colegas!

-Poxa gente! Obrigado! Vocês são os melhores amigos desse mundo, mesmo!

-Imagina cara... aqui é assim mesmo! Um por todos e todos por um. Somos quase irmãos lembra?

-Isso aí!

-Verdade! Nunca me senti tão bem me libertando de uma mentira! Sabem? Eu Acho que eu nunca vou entender o porque ela me abandonou. Acho também que vou amar ela para sempre. Fazer o que, né? São coisas da vida!

Todos concordaram. Clichês à parte, eram coisas da vida.

-Pois é... mas vamos animar esse papo!

-Só sobrou você Noronha! Qual é o grande segredo que você quer revelar aos seus amigos?

-Eu to namorando a Carmem!

A declaração ecoou como uma bomba no recinto. Os três ficaram perplexos, sobretudo o Alberto, que com o baque da notícia quase se afogou com o gole de cerveja. Prevendo o pior, o Vitor tentou evitar que o Noronha continuasse, mas não teve tempo:

-Noron...

-E digo mais: ela terminou com você, Alberto, porque a gente já tinha ficado junto antes mesmo da separação de vocês!

-Noronha, vamos esquecer esse papo e...

-Fui eu que pedi pra ela terminar com você! Ela estava infeliz e eu não queria que ficássemos te enganando daquele jeito!

-Noronha...

-Eu to falando isso porque eu te amo cara! Você é quase um irmão pra mim e eu sei que vai me entender! Ela não guarda mágoas suas. Estamos até pensando em te convidar pra ser padrinho no nosso casamento. A notícia é meio repentina, eu sei, mas creio que em pouco tempo tudo vai voltar ao normal. O que acha?

O Alberto não esboçava reação alguma. Apenas ouvia os relatos, sem se mexer.

-É isso gente... esse é o meu segredo!

-...

-Vamos lá... falem! Alberto, meu irmão, me diz alguma coisa! Quero ouvir o que o meu grande amigo tem a dizer!

-Seu filho de uma puta!

Num pulo, o Alberto sobrevoou a mesa e por pouco não conseguiu agarrar o pescoço do Noronha, que se não fosse rápido, estaria em sérios apuros. O Carlos imediatamente agarrou o colega, antes que ele voltasse a tentar investir contra o novo namorado de sua ex-mulher. O Vitor não se conformou:

-Porra, Noronha!

A noite era para confissões, é verdade. Mas não para confissões tão reveladoras assim.

O Noronha ainda se defendeu...

-Eu falei que isso não ia dar certo, eu falei!