domingo, 18 de fevereiro de 2007

Dia de folia

Marcos e Beatriz, o jovem casal que tinha se mudado do Rio de Janeiro para Curitiba, estava apreensivo. A mudança de ares era recente, de menos de um ano. Marcos recebeu uma proposta de emprego irrecusável, e não teve escolha a não ser deixar para trás os amigos e o resto da família.

O começo tinha sido difícil, mas agora todos já estavam adaptados. Beatriz, acostumada às tardes de 40° típicas do Rio, quase teve um treco ao encarar os inúmeros dias de geada que costumeiramente assolam Curitiba. Essa sem dúvida tinha sido a pior parte. No mais, não tinham do que reclamar. A cidade era linda, limpa, e as pessoas apesar de meio fechadas tinham o seu valor. Marcos, falante como ele só consegue ser, já tinha feito inúmeras amizades ao redor da vizinhança a exemplo de sua esposa e de seu filho, o Paulinho, que já estava tão habituado ao novo ambiente que começou a “sotaquear” seus primeiros “leite quente”, para desespero dos pais que faziam o possível para ensinar o garoto a puxar o “s” com vontade.

Tudo ia bem, mas a família estava ansiosa por uma ocasião específica que ainda não tinham tido a oportunidade de presenciar: o primeiro carnaval de suas vidas fora da Cidade Maravilhosa.

Aquela era uma data especial para eles. Tinham se conhecido num baile de carnaval, ainda crianças. Ele vestido de pirata. Ela de fada. Marcos corria ameaçando os coleguinhas aos berros dizendo “eu sou o pirata da perna de pau e vocês serão o meu almoço”. Sua mãe achou uma graça: além de pirata, canibal. Obviamente não tinham lhe explicado qual o real significado daquele modelito. A correria prosseguia a todo o vapor quando uma das vítimas da fúria do garoto se escondeu atrás de Beatriz implorando por ajuda. Ela, ao perceber a aproximação do garoto não teve dúvidas: sacou a varinha de condão e disse:

-Pluft, plaft, zum! Ordeno que você seja um pirata bonzinho!

A rima não era o ponto forte da garota, mas não importava. De fato sua “mágica” conseguiu acalmar a pequena fera, que após ouvir as palavras proferidas pela fada, parou de correr e passou a admirar aquela linda menina. Depois disso, brincaram a noite toda juntos. Viraram bons amigos. Anos depois, em outro baile de carnaval, deram o primeiro beijo. Desde então nunca mais se separaram, e nunca mais deixaram de “fazer folia” nessa data tão significativa para ambos.

Marcos até tentou descolar alguma dica com os colegas de trabalho sobre qual o era o grande agito do carnaval curitibano, mas tudo o que ouviu foi um conselho para ficar em casa e alugar um filme. Tinha até chegado a ouvir alguma coisa sobre a “folia no litoral”, mas preferiu não arriscar. Uma praia chamada “matinhos” não era digna de confiança, ainda mais nessa época.

Não tinham muita alternativa. Já era sábado. Estavam com o coração doído. Ainda acreditavam na louvável hipótese de que um milagre acontecesse e eles finalmente encontrassem um lugar com alguma diversão para foliões sedentos de serpentina como eles. Até lá, ficariam em casa, vendo na TV o desfile das escolas de samba de São Paulo. Se nenhuma novidade surgisse, no dia seguinte iriam vasculhar a cidade toda se fosse preciso, mas iriam sim curtir a data. Mesmo assim, o desânimo era visível.

Foi aí que, para surpresa de Beatriz que assistia ao desfile quase aos prantos de emoção (e olha que era samba de paulista), o Marcos gritou:

-Amor! Corre aqui! Vem ver isso...

Beatriz foi, e quase teve uma convulsão tamanha a felicidade que estava sentindo em função do que acabara de ver: na janela, a algumas quadras dali, um grande aglomerado de pessoas seguia lentamente. Não tinham dúvidas: era um bloco de carnaval.

Plano de emergência: Marcos imediatamente rumou para o sótão buscar sua fantasia da Portela que tinha usado no desfile do ano passado, enquanto Beatriz tentava improvisar uma fantasia de diabinha com um vestidão vermelho e o espeto da churrasqueira. Paulinho também queria participar. Para isso foi preciso apenas pegar uma bermuda velha rasgada em vários lugares, uma camisa esburacada, um pouco de ketchup no rosto e nos braços e uma rápida aula com o pai sobre como andar arcado e gemendo: eis um perfeito zumbi mirim.

E lá se foram eles. Saíram de casa aos berros, cantando marchinhas antigas, para o desespero dos vizinhos que demoram a entender a situação.

-O que é que deu no Marcos e no resto da família? Estão agindo feito loucos!

-Estranho... por que será?

-Não sei!

-Será que não é porque estamos no carnaval?

-Carnaval? E isso existe por aqui?

E lá se foram eles, caminhando rápido em busca do bloco que tinham avistado de casa.

-“O teu cabelo não nega, mulata...”

Estava felizes. Era tudo novo, mas sabiam que iria valer a pena. Chegaram a duvidar de que iriam conseguir pular o carnaval. Beatriz, pensando consigo mesma chegou a rir de tamanha besteira: “Imagina... e eu que cheguei a pensar que por aqui ninguém gostava disso! Como eu sou boba.”

-“Atravessando o deserto do Saara, o Sol estava quente e queimou a nossa cara...”

Estavam chegando perto. Podiam ver ao longe uma penumbra de luz, o que era novidade para eles. Já tinham visto muito blocos do gênero, mas aquela era a primeira vez que avistavam um grupo de foliões que pulavam carnaval com o que pareciam ser velas. Era exótico, mas prometia ser divertido. Estavam cada vez mais perto.

O grupo caminhava lentamente e parecia não estar lá muito animado. Cantavam uma música meio esquisita, com um som meio melancólico. Não tinha cara de carnaval. Marcos ao longe se revoltou:

-E isso lá é jeito de fazer folia? Peraí que agora as coisas vão mudar: eu cheguei!

Estufou o peito, checou rapidamente seu repertório carnavalesco e caprichou na escolha: cantaria o último samba campeão da Portela lá no longínquo 1984, época em que ainda era um moleque. E lá foi ele, berrando a plenos pulmões:

“É cheiro de mato

É terra molhada

É clara guerreira

Lá vem trovoada”

Parou tudo. O aglomerado de pessoas que seguia em frente estagnou-se imediatamente. Muitos se viraram para acompanhar o que estava acontecendo. Beatriz também tinha entrado no ritmo, e agora, a exemplo do marido, cantava o tão querido samba enredo da Portela:

“Epa hei, Iansã! Epa hei!”

Paulinho também estava no clima e balbuciava meia dúzia de vogais tentando acompanhar o ritmo frenético de seus pais. Era pura alegria. Quem diria: estavam pulando carnaval em Curitiba, na companhia de um bloco de rua não muito animado, é verdade, mas que pelo menos lhes dava a sensação de estarem em casa.

-Mas que palhaçada é essa?

O senhor gordinho, vestido de terno preto e com óculos escuros parecia chateado. Marcos não entendeu ao certo o motivo do stress do moço. Devia ser parte da fantasia. O cara parecia ser um agente daquele filme chamado “MIB”. Tentou puxar papo, sem parar de pular e jogar serpentina pro alto:

-E aí companheiro?! Muitos alienígenas por aí?

-Ora seu...

O homem avançou furiosamente sobre Marcos, que recuou instintivamente enquanto um outro grupo de pessoas conteve o ímpeto homicida do senhor de terno. Recuperado do susto, o carioca protestou.

-Mas o que é que foi isso? Que tipo de bloco permite que um homem assim participe? Esse cara é perigoso, tentou me agredir! Cadê o segurança?

Beatriz parece ter se dado conta do que acontecia, mas não teve tempo de explicar a situação para o marido. Antes que pudesse alerta-lo um padre saiu do meio da multidão perguntando.

-Mas afinal de contas o que é que está acontecendo aqui?

-Eu é que pergunto! Eu tava aqui, na minha, curtindo um pouco quando esse cara tentou me agredir. Porra... que tipo de bloco de carnaval é esse?

-Bloco de carnaval?

-É... bloco de carnaval! E o que mais poderia ser?

Beatriz realmente tinha se dado conta do estava acontecendo. Sentiu um frio medonho no estômago e tentou novamente avisar o marido sem sucesso.

-Marcos...

-Agora não amor! Deixa que eu resolvo isso com esses caras...

-Olha... eu não sei o que é que você está pensando meu filho, mas acho que é melhor ter um pouco mais de respeito com esse momento, por favor!

-Respeito? Qualé cara?! Eu vim aqui de boa, sem stress, trazer minha família pra curtir o carnaval! Agora o senhor, um cara fantasiado de padre, vem tentar me dar uma lição de moral? Me poupe!

-Fantasiado? Olha, eu acho que definitivamente o senhor não está entendendo a situação!

-É claro que estou! Vocês não querem que nós, pessoas de outros estados, participemos desse seu bloco de carnaval mixuruca! Eu entendi sim... é preconceito!

-Amor...

-Agora não Beatriz! Me deixa resolver essa situação agora e...

-CALA A BOCA MARCOS! ISSO AQUI É UM VELÓRIO!

-Como?

-Um velório! Será que você não percebeu que esse é um padre de verdade e que logo ali na frente tem uma moça chorando em cima de um caixão!

Marcos parou, olhou com calma, e finalmente se deu conta: realmente estava num velório. Era o enterro da dona Rosélia, uma senhora de 95 anos, religiosa fervorosa, que odiava carnaval e que teve como última vontade ser levada para o cemitério numa procissão.

Situação constrangedora. Depois de muito pensar, Marcos ainda tentou contornar a crise:

-Poxa vida gente, desculpe. Eu não sabia que isso era um velório. É que eu vi o movimento, e como é carnaval eu achei que esse era um bloco de rua, entendem?

Ninguém parecia ter entendido. Beatriz tentou dar apoio ao marido.

-Pois é gente... desculpem, viu? Foi realmente uma grosseria da nossa parte ter feito isso!! Desculpa mesmo, tá?

Marcos ainda tentou ser “simpático”:

-Tudo bem pessoal, ela morreu! Mas é carnaval poxa! “Vâmo animá!”

Ambos foram expulsos do local entre berros e ameaças de agressão. Finalmente tinham se dado conta de que viviam em uma cidade onde carnaval não era algo lá muito importante.

Mas nem tudo estava perdido. Ao chegar em casa, Marcos deu ordens específicas para a esposa fazer as malas: iam rumar para o litoral paranaense no dia seguinte. Mesmo com um certo receio, teria que conhecer a tal de “Matinhos”, ápice máximo da folia naquele estado.

De madrugada, Marcos estava com insônia. Abraçado ao travesseiro não conseguia deixar de pensar numa incômoda teoria de conspiração:

-Porra! E se aquele caixão fosse na verdade uma fantasia? Será que eles nos enganaram?

“Hei, você aí! Me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!”