domingo, 11 de fevereiro de 2007

Conto romântico

Existem certos momentos na vida da gente que são exclusivos. Ocasiões que sabemos que só irão acontecer uma vez na nossa vida, e que muitas vezes nós nem ao menos estávamos preparados para aproveitar. Acontece. No entanto, existem outros momentos em que nos vemos surpreendidos por uma determinada situação, e quando achamos que vamos nos dar bem, tomamos uma rasteira das mais constrangedoras. Também acontece. Ou melhor: aconteceu comigo.

Era um daqueles dias de Sol forte mas de baixa temperatura. Coisas que só um curitibano entende. Embarquei no ônibus no centro da cidade rumo à faculdade. Aquele parecia ser “um dia de sorte”. As coisas tinham dado certo no trabalho, me sentia extremamente feliz e, ainda por cima, consegui um lugar para sentar no ônibus. Coisa rara. Era um dos últimos bancos, daqueles que ficam virados para o lado oposto e nos forçam a ficar encarando durante boa parte do trajeto o passageiro que senta à nossa frente. Não demorou muito, e ele logo ficou vago. Foi aí que tudo aconteceu.

Novos passageiros entraram no ônibus, e junto a eles, estava ela: a mulher mais linda que eu tive a oportunidade de conhecer em toda a minha vida. Demorei a me dar conta do fato. Apenas reparei que dois rapazes que estavam sentados mais ao fundo, os únicos homens no meu campo de vista, ficaram boquiabertos com o que tinham acabado de observar. Logo entendi o motivo.

Alta, corpo escultural, cabelos negros longos reluzentes, uma boca que faria a da Angelina Jolie parecer beiço de criança, e os olhos verdes mais deslumbrantes que tinha avistado em toda a minha vida. Ela atravessou meu campo de visão ao acaso, procurando um lugar para se sentar, e não pude deixar de ficar abismado com a visão do paraíso que tinha acabado de presenciar. Toda vestida de branco, lembrava um anjo, e por alguns segundos me fez duvidar que ainda habitava o reino dos vivos. Pensei comigo mesmo: “Puta que pariu! É o meu dia de sorte!”.

Acreditem, não é exagero. Quer dizer, pode até ser exagero, mas quem presenciasse a cena certamente entenderia o motivo. A beleza bela era igualmente exagerada. Ela era uma hipérbole ambulante. Achei que mulheres assim não existiam de verdade. Que deviam ser fruto apenas da imaginação de escritores. Nunca fiquei tão feliz em descobrir que estava errado.

Ela parou na minha frente, olhou para um lado, para o outro e decidiu ficar em pé. Existiam dois lugares vagos: um banco “unitário”, mais ao fundo, onde teria a oportunidade de ficar a salvo de olhares curiosos até o fim da viagem, e um à minha frente, onde obrigatoriamente teria que ficar me encarando durante boa parte do trajeto. Ela pensou um pouco, olhou para o banco frontal a mim sem muito interesse, e para o outro. Analisou com calma o peso de sua bolsa e parece ter se decidido a seguir o resto da viagem sentada. Observou novamente os lugares, e deu dois passos rumo ao acento vago no fundo do ônibus. Normal. Não mantinha esperanças de tê-la sentada a minha frente. Olhar para mim durante boa parte de uma viagem realmente não é uma dádiva das mais agradáveis. O que eu não esperava é que ela parasse no meio do caminho, pensasse mais um pouco, e desse meia volta para se sentar no banco à minha frente. “Puta que Pariu! Realmente é o meu dia de sorte!”

Era difícil conter a empolgação. Analise comigo: seja você homem ou mulher, pense na figura mais linda do sexo oposto que consegue imaginar. Pois é. Eu estava observando um exemplar vivo dessas minhas expectativas no mesmo ônibus que eu, e melhor, sentada exatamente à minha frente.

Lá estava ela, sentada, olhando para fora sem muito interesse, alheia a todos os olhares fascinados, dentre os quais o meu. Mantinha uma expressão serena, tranqüila. Simples, mas feliz. Parecia não se dar conta de toda a beleza que exaltava em cada movimento, em cada gesto que fazia. E eu ali, de frente, de camarote, quase babando de emoção.

Não devia ter mais do que uns 22 anos. Era jovem, e levando-se em conta a minha idade não pude deixar de conceber a irreal mas fantástica hipótese dela “me dar mole”. “Já pensou se ela olha pra mim e diz: oi tudo bem? Você sempre pega esse ônibus? Eu seria o cara mais feliz do mundo”. Ri de mim mesmo. Ela estava muitos níveis acima de qualquer padrão de mulheres vagamente possíveis para mim. Aliás, duvido muito que qualquer homem estivesse em um nível digno do dela. Pobrezinha. Estava condenada a ser amada por seres inferiores.

Disfarçadamente passei a analisar com calma os detalhes ocultos escondidos sob minha empolgação momentânea. Percebi que na bolsa que carregava existia um nome pequeno, bordado em letras cursivas: Júlia. Júlia Medeiros. Que nome lindo. Se algum dia tivesse uma filha, esse seria o seu nome: Júlia. E se algum dia minha filha viesse me perguntar o motivo de seu nome, explicaria que foi em homenagem a um anjo que conheci dentro de um ônibus. Certamente seria chamado de louco e internado num asilo de pais caquéticos, o que não seria problema. Ia valer a pena.

Ela continuava observando a paisagem enquanto eu desfrutava de cada segundo de sua silenciosa e involuntária companhia. Suspirava por dentro. Quanta felicidade. E eis que, aparentemente entediada com a vista externa, ela virou o rosto e passou a analisar o ambiente do ônibus. Disfarcei imediatamente. Bocejou. Com a mão esquerda esfregou delicadamente os olhos para espantar o sono. Sorriu com os cantos da boca, como se acabasse de se dar conta de que estava cansada. E, do nada, olhou para mim.

Foi um olhar casual, mas definitivo. Ela parecia ter focado sua atenção em mim. Eu estava olhando para fora, para tentar disfarçar. Mas, com o cantinho dos olhos, podia perceber que ela analisava pausadamente minha face quase que retribuindo todo o tempo que tinha dedicado em medir cuidadosamente as feições de seu rosto.

Estava atônito. Sim, ela estava olhando para mim. O que fazer? Certamente ela devia estar pensando “Poxa... como é que deixam uma criatura dessas solta por aí sem coleira?”. Eu sabia que ela devia estar rindo por dentro, tentando desesperadamente conter sua vontade de soltar uma gargalhada em “homenagem” a mim. Mas não. Ela parecia estar me olhando com um certo interesse. Chegou até a inclinar levemente a cabeça para baixo a procura de um ângulo diferente para poder observar minha cara. E, para minha surpresa maior, ela parecia estar sorrindo. Um sorriso singelo como o de alguém que pensa “como ele é fofinho”.

Mas, o que fazer? Era fato que eu estava sendo observado. Observado com interesse. Observado, com interesse, pela mulher mais linda que já tinha visto ao longo de toda a minha vida. Sempre fui um covarde pra esses assuntos. Daqueles que tem vergonha de olhar na cara até de própria namorada. Tinha que tomar uma atitude. Aquele era um momento único. Certamente tomaria um fora, mas aquele era realmente um momento único. Seria o fora de minha vida. O fora que iria contar para os netos com orgulho. Diria: “E ela me chutou antes que eu pudesse terminar a frase”, e os meus netos me olhariam com admiração e diriam: “Caramba! Como o vô é foda!”

Tomei fôlego. Sim, eu iria encarar ela, estava decidido. Não iria desviar meu olhar enquanto ela não me fizesse ficar arrependido de minha ousadia. Era chegada a hora. Já estava totalmente vermelho de vergonha, podia sentir. Tomei fôlego novamente. Quanto mais rápido fizesse aquílo mais rápido teria a confirmação definitiva de minha inferioridade.

Me virei. Me virei fingindo uma certa distração, e pude confirmar o que o canto dos meus olhos já tinham constatado. A Júlia, a mulher mais linda que tinha visto, estava me olhando. Encarei. Mirei meu olhar diretamente para os dois olhos verdes dela. Um verde intenso, profundo, que fariam duas esmeraldas parecerem bijuterias. Resisti ao poder hipnótico daqueles olhos. Tinha que resistir. Lá estava eu, impassível, olhando-a de frente, corajosamente, esperando o “toco” derradeiro.

Ela percebeu. Tinha acabado de constatar que eu estava lhe encarando de frente. Era chegada a hora. Teria que ser punido pela minha ousadia.

Entretanto, para minha mais absoluta surpresa, não foi isso que aconteceu. Ela sorriu. Sim leitor, ela sorriu. Estava chocado por completo, tão chocado quanto vocês devem estar agora, mas ela sorriu. Ela estava sendo complacente, como que retribuindo minha admiração manifestada pelo olhar. Fiquei pasmo. A mulher mais linda que tinha conhecido estava olhando, para mim, e sorrindo. “Puta que pariu! Definitivamente é o meu dia de sorte!”

Não tinha o que fazer. Fiz apenas o que poderia ter feito numa situação daquelas. Sorri também, e não podia ter feito uma melhor escolha. Ela parece ter tido uma admiração renovada, como se meu sorriso tivesse servido de inspiração definitiva para ela. Estava me sentindo a reencarnação pobre do Brad Pitt.

Mas as surpresas não tinham acabado. Trocávamos olhares e sorrisos quando ela tomou a iniciativa:

-Oi!!

Sim, era inacreditável, mas era verdade. Ela tinha me dito “oi”. A mulher mais linda, deslumbrante, e incrível que tinha conhecido em toda a minha jovem vida tinha me dado um “oi” por iniciativa própria. Meu coração foi parar na goela.

-O.. oi!

_Tudo bem?

-Tu... tudo! Tudo bem. Tudo ótimo.

-Que bom.

Ela sorriu de volta. Parecia satisfeita com a reação. “Puta que pariu! Esse é realmente, com toda a certeza, meu dia de sorte!”

-Desculpe estar te incomodando....

-Imagina... o que é isso! Você não está incomodando!

-Que bom... bem, é... eu não pude deixar de perceber que você estava me olhando.

Ai meu Deus. Era agora. Ela ia me esfregar na cara que não, ela não queria ter nada comigo. Ou, na melhor das hipóteses, ela iria perguntar se eu queria o telefone dela para marcarmos um encontro qualquer dia desses. Sabe como é que é... para nos conhecermos melhor. Já pensou nisso??? Eu estava prestes a ganhar na loteria sem nem ao menos ter feito a aposta. Era sorte demais, era felicidade demais. Mas ela ia falar. Sim, ela ia falar. O momento que tinha esperado ansiosamente por toda minha vida estava prestes a se concretizar.

-É... bem... hehehe... sim, eu estava olhando para você. Desculpe.

-Ah... o que é isso! Não precisa se desculpar. Foi até bom que você tivesse prestando atenção em mim.

-É?? Porque??

-Porque sim... eu acho que posso te ajudar.

-Ajudar??

-É, ajudar... quer meu telefone??

-É claro. Se não for incômodo.

-Ai que bom. Peraí.

Ela abriu a bolsa, e depois de tatear às escuras durante alguns segundos, tirou um cartãozinho lá de dentro, e me entregou. Nele, estava escrito em letras grandes o que eu já sabia: Júlia Medeiros. Mas tinham informações novas também. Seu telefone, e seu emprego: dentista.

-Ah... obrigado pelo cartão mas, porque ele?

-É que não pude deixar de perceber que você tem um pequeno problema dentário!

-Como é que é?

-Problema dentário! O seu canino direito é meio torto. Acho que seria interessante fazermos um tratamento enquanto você ainda é jovem para evitarmos problemas maiores no futuro.

-Ahhh... bem, podemos pensar a respeito. Hehehe! Seria legal tê-la como doutoura. Bem que eu estava precisando de uma dentista!

-Bem, na verdade, eu acho que essa área de tratamento é mais específica para o ramo odontológico em que meu marido trabalha!

-Marido?

-Sim... marido. Ele também é dentista, e acho que ele pode lhe atender melhor do que eu. Você vai adorar ele. Ele é um amor de pessoa.

-Imagino...

-Bem, você tem o telefone do nosso consultório. Se estiver interessado no tratamento é só ligar.

-Ah sim... ok!! Obrigado, viu?

-Imagina... foi um prazer. Opa... cheguei no meu ponto. Tenho que ir, viu? Tchau.

Ela se levantou, pegou a bolsa e desceu tão rápido que mal pude perceber o que estava acontecendo. Ainda estava assimilando o que tinha acabado de presenciar.

“Puta que pariu! Não era o meu de sorte!”