domingo, 27 de julho de 2008

Estômago

O Everson era uma espécie de lenda entre os amigos. Quando se reuniam em busca de diversão, era ele quem comandava as hordas bárbaras de beberrões com a autoridade de um general em combate. Dava ordens aos garçons, administrava e distribuía os aperitivos, e bebia tal qual um possante de oito cilindros num posto de gasolina. Um “Genghis Khan” do boteco, como era conhecido informalmente.

Ninguém ali era capaz de fazer frente ao espírito kamikaze do rapaz, que tinha em seu currículo boêmio comas alcoólicos suficientes para registrar em catálogo. Alguns, inclusive, dignos de admiração pelos demais colegas.

-Lembra daquele porre do Everson?

-Se eu lembro? Fui eu quem tive que levar ele pra casa, tá lembrado?

-Como será que ele conseguiu, hein? Nunca tinha visto ninguém beber tanto.

-Vai por mim... O Everson é um fenômeno. As cervejarias deveriam construir estátuas a ele em praça pública como forma de agradecimento.

Mas um dia tudo mudou.

O Everson mal tinha consumido a primeira dúzia de garrafas de cerveja quando sentiu uma fisgada no estômago. À medida que o tempo passava a sensação ruim piorava. Uma ânsia cada vez mais incontrolável ia, sorrateira, vencendo seu autocontrole. Não demorou muito para que a situação ficasse insustentável. Sem alternativa, correu para o banheiro, onde, segundo ele próprio, só não vomitou a própria alma porque felizmente ela não era liquida.

Mesmo a contragosto aceitou a sugestão de passar alguns dias afastado dos eventos etílicos promovidos pela galera. Afinal de contas, tanto abuso no decorrer dos anos certamente teria seu preço, nem que esse fosse o de passar algum tempo longe do bar.

Na semana seguinte, já aparentemente recuperado, foi ao encontro dos colegas. Mas a tão aguardada volta triunfal parou nos primeiros goles. A sensação ruim não só voltou, como dessa vez as conseqüências foram ainda mais vorazes. Foi levado para casa às pressas, antes que a situação ficasse pior, e que o banheiro do local fosse permanentemente interditado.

Inconformado, perguntou a si mesmo o que estava acontecendo. Nunca tivera tido aquele tipo de “frescura” antes.

Insistente, continuou tentando sistematicamente reassumir o controle sobre o seu estômago... Em vão. A coisa piorara a tal ponto, que até o cheiro de uma bebida qualquer lhe causava asco.

Depois de algumas semanas de golfadas persistentes e incontroláveis, contrariou seus próprios princípios e resolveu ir a um médico.

Exames e mais exames chegaram ao mesmo diagnóstico: ele estava absolutamente saudável.

-Mas doutor... Eu nem posso chegar perto de uma bebida com um pouquinho de álcool que eu começo a passar mal. Tem que ter alguma coisa fora do lugar!

-Acredite: você está mais saudável do que a maioria das pessoas por aí.

-Não tem de errado nada mesmo?

-Nada!

-Nem no estômago, no fígado... Sei lá!

-Não, tudo em ordem.

-Nem uma cirrosezinha?

-Olha: pelo que você me descreve, isso é absolutamente psicológico.

-Mas não tem sentido.

-Pois é. Mas só pode ser isso. Fisicamente você está em perfeitas condições.

A coisa era pior do que ele imaginava. Se um beberão que não conseguia nem ao menos ser repreendido pelo médico era motivo de vergonha, que dirá então um que era classificado como “saudável”... Era a humilhação suprema.

Desesperado, partiu em busca de uma cura para sua insólita “maldição”.

Psicólogos, psiquiatras, gastroenterologistas, videntes, pais-de-santo... Todas as alternativas possíveis de melhora foram buscadas, fossem elas ortodoxas ou não. No entanto, nenhuma surtiu resultado.

Resignado, concluiu que seu estômago tinha se tornado uma espécie de “chacota divina”, uma prova inexorável que Deus não só tinha um senso de humor bastante peculiar, como adorava fazer uma piada. Afinal de contas, quer algo mais irônico do que um boêmio de pedigree que não consegue mais beber, por mais saudável que ele estivesse?

O Todo Poderoso deveria estar lá em cima, rindo pra valer da própria anedota.

Vez por outra ele ainda comparece aos encontros promovidos pelos colegas, apenas como espectador. Mas não é a mesma coisa. Descobriu que ser o único são numa mesa de bar tira toda a graça da brincadeira.

Hoje o Everson é um outro homem: vive uma vida regrada, só toma água, come apenas alimentos saudáveis, perdeu peso, arranjou uma bela namorada, passou a aproveitar melhor seu tempo, prosperou profissionalmente e etc, etc, etc...

Mesmo assim, há quem diga que às vezes é possível encontrá-lo num canto qualquer, chorando feito criança, com saudades de seus tempos de boêmio.

Pobre Everson... Que mundo cruel!