terça-feira, 26 de agosto de 2008

Danilinho

No começo ele chegou a pensar que era um assalto. Caminhava pela rua quando foi agarrado pelo pescoço numa chave de braço digna de medalha olímpica se estivsse na disputa de luta greco-romana. Quando finalmente conseguiu se desvencilhar do ataque, se deu conta que quem tinha lhe agarrado não era um bandido. Pelo menos não um bandido qualquer: tratava-se de uma loira alta, esguia, que exibia um sorriso de felicidade escancarado. Uma visão tão deslumbrante que lhe fez engolir seco as dúzias de impropérios que iria desferir assim que fosse solto.

-Danilinho!!! Eu não acredito que é você! – Gritou a moça, visivelmente comovida com o encontro.

Mas nem ele acreditou, já que o seu nome era Felipe, não Danilo. Aliás, numa rápida análise de memória, se deu conta de que nem ao menos conhecia alguém com aquele nome. Também nunca tinha visto antes aquela loira de atributos generosos, tinha certeza. Era bom fisionomista. Jamais esqueceria um rosto (e um corpo) como aquele.

Obviamente tratava-se de um engano. Devia ser parecido com o tal de Danilinho, que provavelmente era um velho amigo dela do passado. Quer dizer: não deveria ser só um "velho amigo", e sim um "grande amigo". Dava para ver em seu rosto. Sua empolgação era tamanha, que parecia estar diante de um tesouro recém descoberto.

Era uma pena, mas teria que explicar que não, ele não era o Danilinho. E olha que, naquelas circunstâncias, ele bem que queria ser. Praguejou em pensamento: “Se não bastasse eu estar sozinho, ainda tenho que dispensar uma obra de arte dessas. É muita ironia do destino!”

No entanto, quando ia desfazer o equívoco foi contido por outro abraço da loira sorridente. Ficou sem ação. Sua cabeça pedindo para explicar a situação de uma vez, mas seu corpo estagnado.

-Caramba! Eu não acredito que é você! – Disse a moça, com os olhos marejados.

-Na verdade acho que a senhorita está...

-Você lembra-se de mim, né?

Ele ainda tentava assimilar a situação. Não era todo dia que uma mulher daquelas se atirava, literalmente, no seu pescoço. Duas vezes. Pior ainda: ela lhe observava com cara de criança pidona à espera de um “sim, eu lembro de você”.

Aqueles olhos verdes, esperançosos por uma resposta positiva, e ele ali, prestes a acabar com tudo.

Talvez fosse o Sol forte na nuca, ou aqueles lábios reluzentes trêmulos de expectativa, mas ele não conseguiu dizer não.

-Mas é claro que eu lembro de você!

Foi pego de surpresa com a própria resposta. Não era homem de enganar ninguém, muito menos de ficar flertando com uma moça que jamais tinha visto antes. “Ai meu Deus, o que foi que eu fiz?”, pensou ele já meio arrependido.

-Aiiii Danilinho! Que bom! Você não sabe da saudade que eu sentia de você. – Disse ela, abraçando-o novamente.

Mais um abraço daqueles e ele admitiria ser até a Cleópatra se ela pedisse. Aqueles braços delicados em volta de seu pescoço, os seios fartos repousados contra seu peito, aquele corpo voluptuoso e macio como seda junto ao dele, o perfume doce que inundava seu olfato... Não dava para resistir. Os sentidos sucumbiram à razão. Era seu dever cívico levar a conversa adiante.

Ainda empolgada, ela carregou-o pela mão até a mesa de uma cafeteria que ficava do outro lado da rua. Um encontro daqueles, mesmo inesperado, merecia um diálogo de verdade.

Sentaram-se. Ela pediu um cappuccino, só para ter um álibi para usar a mesa. Ele, para acompanha-la, um café.

-Quanto tempo, né? – Disse ela, sem tirar o enorme sorriso da cara.

-Ô! Bota tempo nisso. – Respondeu ele ainda meio sem jeito.

-Fazem o quê? 15 anos?

-É... É... Acho que fazem sim.

-Nossa! O que a gente aprontou naquele colégio, né?

-É... No colégio! Aprontamos horrores.

-Você sempre metido em confusão e eu sempre salvando a sua pele.

-É, né?

-Eu era santinha, até conhecer você.

-Pois é.

Não tinha o que dizer. Como dialogar sobre o passado com alguém que não se conhece? Usava apenas respostas evasivas, tentando fazer com que ela soltasse alguma pista com que pudesse trabalhar.

-Lembra daquela vez em que a gente botou chiclete na cadeira da professora?

-Acho que lembro, sim!

-Lógico que lembra. Tem que lembrar. Foi você que insistiu pra gente fazer aquilo. Aliás, você sempre me convencia com aquela sua lábia.

-É, né? Eu era... Terrível!

-Como era mesmo o nome daquela professora? Só sei que era bem engraçado.

-Bozolina?

-Não... Não era isso! Mas você devia lembrar. Você tinha fama de ter memória de elefante.

-Eu? Imagina.

-Tinha sim... – Neste instante o garçom trouxe os pedidos: o cappuccino dela e o café dele. Ela questionou. – Aliás, se bem me lembro, você não bebia café.

Sentiu que estava prestes a ser desmascarado. Desconversou.

-Muita coisa mudou de lá pra cá.

-Discordo. Você, pelo menos por fora, não mudou nadinha. Tá a cópia exata do cara que era da última vez que te vi. Até parece que o tempo não passou para você.

-O que é isso, imagina! Você sim está ótima. Linda como sempre.

Parecia impossível, mas ela conseguiu sorrir com ainda mais intensidade depois do elogio, fazendo o Felipe concluir que tinha tomado a decisão certa ao dizer ser quem não era. Só aquele sorriso já tinha recompensado com sobras sua ousadia.

-A gente era tão amigo, lembra?

-Claro que lembro... Éramos... Sei lá... Inseparáveis.

-Eu te contei todos os meus segredos. Era a única pessoa em quem eu confiava. Você era o meu porto seguro.

-Pois é. Mas eu também te contava meus segredos.

-Contava nada. Dizia que eram coisas pesadas demais pra compartilhar comigo. Típica desculpinha esfarrapada.

-Ah, é? Tinha esquecido disso.

-Lembra daquelas tardes em que passamos embaixo daquele pé de ipê no quintal de minha casa, papeando sem parar?

-Lembro.

-Lembra como a gente gostava de ficar deitado na grama até bem tarde para contar as estrelas?

-Lembro.

-Lembra daquele esconderijo secreto que a gente tinha lá perto da sua casa, onde volta e meia a gente visitava só pra poder ficar sozinho e conversar?

-Lembro.

-Pois é. Fazíamos uma bela dupla.

-É... Uma dupla do Barulho.

-“Danilinho e Sandrinha, os terríveis!”, era assim que chamavam a gente, tá lembrado?

Sandra, vulgo Sandrinha. Finalmente tinha descoberto o seu nome. Se bem que o diminutivo não tinha qualquer validade. Não existia nada de “inho” nela. A Sandra era “ão”, dos pés à cabeça.

-Como é que eu poderia me esquecer? Foi uma época tão feliz.

-Para mim também, sabia? Juro pra você que eu acho que foi uma das melhores da minha vida. Mas o mundo da voltas. A gente cresce, e perde contato com as pessoas.

-Pois é.

-Mas agora o destino nos pôs de volta um no caminho do outro. Não vou te perder mais de vista. – Neste instante, ela delicadamente pegou em suas mãos e olhou no fundo de seus olhos.

-Nem eu, nem eu... – Disse o Felipe, tentando retomar os próprios batimentos cardíacos.

-Sabe... Quando eu te vi... Sei lá! Não me controlei. Tinha certeza que era você, por isso te agarrei daquele jeito, pelo pescoço. Percebi que você ficou meio sem jeito. Desculpe se te dei um susto.

-Não tem problema. Admito que me assustei um pouco na hora. Mas foi um susto bacana. O mais lindo que eu já tive. – Retrucou ele, deixando-a visivelmente encabulada com a frase.

Ele vibrou com o próprio flerte. Podia ser só coisa da sua cabeça, mas sentia que existia mais do que nostalgia na voz da moça que lhe confundira com outro homem. Ela parecia fascinada. Era como se tivesse algum tipo de sentimento mal resolvido entre ela e o velho amigo que ele fingia ser.

-Você, hein? Sempre um galanteador, né Danilinho?

-O que eu posso fazer? Você causa isso nas pessoas. Só estou relatando o que vejo.

-Não foi o que você me disse há 15 anos, lembra?

-Como?

-Você sabe que eu era louca por você.

-Sei??

-Claro que sabe... Lembra que poucos dias antes da gente terminar o colégio, eu te pedi em namoro?

-Pediu??

-Até cheguei a pensar que você ficou meio bravo comigo, na época. Fiquei mal e tudo mais. Foi um peso na consciência que carreguei comigo por todos estes anos. Você não ficou bravo, ficou?

O Felipe mal podia acreditar. Estava diante de uma das mulheres mais deslumbrantes que tinha visto em toda vida, e ela tinha acabado de admitir que era apaixonada por ele desde menina. Quer dizer: por ele não. Por um cara muito parecido com ele. Mas isso era só um detalhe.

-Claro que não. Por que iria ficar chateado com você?

-É que, sei lá. Na época você pareceu ter ficado. Disse que não queria namorar comigo, que não queria estragar nossa amizade. Você foi gentil, mas achei que tinha se zangado por eu ter tomado a iniciativa de tentar algo mais sério.

O Felipe não pôde deixar de praguejar o Danilinho em pensamento. Como é que um homem em sã consciência poderia negar um pedido de namoro de uma mulher daquelas?

-Eu jamais faria isso. Você sempre foi importante para mim. – Disse ele, modulando sua voz para o estilo “cantor de bolero”, deixando-a ainda mais sem jeito.

-Ai, Danilinho!

“Dane-se o bom senso”, pensou o Felipe. Aquílo não era coincidência, aquílo era o destino! Sim, o destino. Situações como aquela não aconteciam à toa. Alguma coisa deveria ter colocado ele ali para corrigir aquela injustiça, para saldar a dívida que o frouxo do Danilinho não tinha quitado no passado. Era seu dever terminar o que um dia aquele canalha tinha começado. Era questão de justiça fazer a Sandrinha feliz... Pelo menos era o que ele diria a si mesmo se sua consciência ficasse pesada.

-Mas, olha: quer saber? Você fez a coisa certa quando não aceitou o meu pedido. – Disse ela, tentando desconversar.

-Não. Eu estava errado.

-Errado? Como assim?

-Eu errei. Ficar com você teria sido a coisa certa.

-Sério, Danilinho?

-Não teve um só dia durante todos estes anos em que eu não tivesse me arrependido daquela decisão, Sandrinha.

-Ai, Danilo! Não brinque com uma coisa dessas. Você não sabe como foi difícil para mim te esquecer e...

-Pois a partir de hoje você não precisará mais me esquecer. Poderá me guardar para sempre em seu coração. – Disse o Felipe, para em seguida tomar a Sandrinha nos braços e beijá-la longamente.

***

Horas mais tarde, no apartamento da Sandrinha, o Felipe se distraía fazendo planos para o futuro enquanto observava a loira deslumbrante que tinha lhe agarrado na calçada dormindo nua na cama do quarto, com um inconfundível sorriso de felicidade entre os lábios.

No dia seguinte, durante o café, explicaria para ela a situação. Diria que não era o Danilinho, e sim o Felipe, um leonino de 27 anos que trabalha como contador. Um paranista, solteiro, que gosta de ler revistas em quadrinhos e jogar vídeo-game nas horas vagas. Em síntese: um partidão.

Se ela por ventura não gostasse da revelação (hipótese bastante improvável na visão dele), explicaria que ficou comovido com a situação da moça, e que iria se sentir um canalha se tivesse que lhe dizer que não era seu amigo dos tempos de adolescência. Diria que era um cara altruísta, do tipo que não pode ver ninguém sofrendo, que já quer ajudar. Além do mais, iria fazê-la feliz, como o tapado do antigo colega (que segundo ele era um safado de marca maior por ter “‘enganado’ ela durante todos aqueles anos de convívio, lhe dando falsas esperanças”) jamais faria.

Ela certamente haveria de entender a situação e perdoá-lo.

Naquele instante, a Sandrinha acordou. Com muito custo, abriu discretamente os olhos, se espreguiçou, e com um sorriso nos lábios perguntou:

-Você não vem dormir? Está tão gostoso aqui...

-Já vou meu anjo, já vou.

Ainda reflexivo, cochichou baixinho, para si mesmo:

-Danilinho, Danilinho... Você deveria me agradecer!

E foi deitar.