segunda-feira, 30 de abril de 2007

O último dia

Estava tarde, passava das duas da manhã. Carlos, com sempre fazia, rumava para a cama depois de mais um longo dia de trabalho. O humor, como sempre, não era dos melhores. Se sentia explorado, e estava cansado disso. No escritório era quem mais trabalhava, e quem menos era reconhecido pelo seu esforço. Sempre tinha sido assim. Já tinha perdido a conta das vezes em que toda a sua dedicação tinha sido posta em segundo plano para valorizar as virtudes de outras pessoas, que a seu ver, nunca tinham chegado sequer aos seus pés. Seus pais sempre tinham dado mais atenção ao seu irmão mais velho do que a ele. Seus professores nunca lhe davam ouvidos. Seus colegas fizeram dele uma espécie de fardo, que carregavam para todo lado mesmo sem dar muita bola. A vida tinha sido cruel com Carlos. Vivia solitário, numa casinha pequena que tinha alugado, sem muitas perspectivas de um futuro animador, nem amigos.

Tinha feito hora extra. Estava cansado. Certamente não receberia nem um tostão a mais pelo esforço e muito menos o reconhecimento de seu chefe tirano. A frustração escorria pelos seus poros, podia sentir. O melhor que tinha a fazer era dormir, para ver se o seu sono seria capaz de apagar de vez aquele sentimento de derrota. Amanhã, tudo seria diferente.

Mantinha os olhos fechados. Se esforçava para esvair de sua mente os pensamentos ruins que lhe atormentavam por todos os lados. Só assim conseguiria repousar. O sono estava quase lhe batendo à porta quando um calafrio repentino percorreu toda a extensão de sua espinha. Abriu os olhos repentinamente, assustado. E eis que para seu espanto ainda maior se deparou com uma figura que lhe deixou em pânico: uma moça jovem, bonita, vestida com um grande sobretudo preto entreaberto, de onde se podia enxergar, mesmo que casualmente, sua silhueta bem definida. Seria uma visão das mais lindas em outras circunstâncias, mas naquele caso, Carlos se assustou. Como tinha entrado, o que fazia ali? Perguntas diversas pipocavam na cabeça do rapaz, que sem ação, apenas levantou as cobertas como se tal recurso lhe servisse de escudo.

A moça continuava ali, estática, observando a cena. Um sorriso daqueles de canto de boca sobressaía-se em sua expressão. Os dois grandes olhos negros que contrastavam com o resto de seu rosto claro, quase pálido, fitavam cuidadosamente a ação de Carlos. Este por sua vez continuava perdido, sem saber ao certo qual atitude tomar.

-Não se assuste!

A voz da garota ecoou pelo quarto. O timbre era grave, seguro, e passou confiança ao homem que tentava se esconder por debaixo das cobertas.

-Que... quem é você?

-Uma amiga!

-Eu não tenho amigos!

-Ok...

-O que quer de mim? O que está fazendo no meu quarto?

-Calma... uma pergunta de cada vez! Bem... essa parte de explicar é sempre a mais chata! Em síntese, posso dizer que vim levar você!

-Levar? Levar pra onde?

-Ah... você sabe! Levar... entende? Levar pro “outro mundo”!

Carlos entrou em pânico.

-Você vai me matar?

-É... tecnicamente sim! Na verdade não é bem isso, mas à grosso modo, posso dizer que eu vou te matar sim! Tomara que os seus advogados não me ouçam! Hahahahaha

A moça gargalhou sozinha, achando graça da própria piada, enquanto o rapaz lhe observava atônito, num misto de pavor e impotência. A casa treme inteira.

-Olha... pode levar tudo, ouviu? Minha TV, meu computador, meu salário que está na gaveta de estante... só que, por favor, não me mate!

-Qualé cara? Não me subestime! Seus pertences não me interessam!

-Então o que você quer aqui afinal de contas?

-Já disse! Vim pra te levar comigo!

-Você é uma serial killer né?

-Larga mão de ser burro! Se eu fosse uma serial killer sua cabeça já estava longe do seu pescoço no instante em que você me viu!

-Então porque que é que você quer me matar?

-Querer eu não quero. É o meu emprego. Eu apenas cumpro ordens!

-Ordens? De quem? Olha... seja lá quem for que eu irritei, e que quer me matar, diga que eu me arrependo e que se eu vou ficar de bico calado!

-Já te disse que essa não é a questão. Você tem que morrer e pronto! Não existe solução... sua hora chegou!

-Ta! Peraí: quem é você afinal de contas?

-Você que saber que sou eu? Hehehehe... essa é sempre a melhor parte!

A moça, visivelmente empolgada, dá dois passos para trás, muda as feições até então simpáticas para um ar mais sombrio, da uma pigarreada para calibrar o tom de voz ideal e exclama sombria:

-Eu sou a Morte!

Carlos não se surpreende.

-Morte? Conta outra!--Retruca Carlos, incrédulo.

-Porra! Eu me produzi inteirinha, ensaiei por milhares de anos consecutivos, pra um cara como você desdenhar da minha cara? Isso é frustrante!

-Pare com esse papo e me diga quem é você, antes que eu me irrite e acabe te machucando!

-Hahahaha... você? Me machucar? Essa foi a melhor piada da noite! Hahahaha

-Pare com isso! Eu to avisando!

-Escuta aqui: eu sou a Morte sim, ta sabendo? Ta surpreso com o que? Como achou que eu era? Parecida com a Carmem Miranda?

-Isso é lenda!

-Lenda o cacete! Porra... a gente trabalha desde o princípio da humanidade e nem assim é reconhecido! Devia ter ficado no serviço burocrático!

-Sai daqui! Me deixe em paz!

-Não adianta ficar de birra. Sua hora chegou! Resistir é inútil!

-Você quer mesmo que eu acredite que você é a Morte?

-Não precisa acreditar... só colabore comigo! Daqui a meia hora vai ter um acidente de carro do outro lado da cidade e eu preciso estar lá!

-Isso é loucura!

-Não Carlos! Não é loucura!

-Você sabe o meu nome!

-É claro que eu sei! Como é que você acha que eu descubro quem devo matar? Pelo cheiro?

-Eu estou ficando assustado!

-Não se assuste! Vai ser até bom sabia? As coisas lá no paraíso serão bem mais divertidas do que são aqui! Esse mundo está perdido sabia? Nunca trabalhei tanto... e dizem que o chefe já falou que do jeito que as coisas andam, isso daqui não vai durar muito não!

-É? Bem... eu estou surpreso! Sempre imaginei que você, a Morte, seria diferente!

-Eu era... usava um vestidão preto com um capuz grandão. Era o uniforme. Nem dava pra enxergar a minha cara! Usava uma foice também... mas isso foram em outros tempos!

-E porque mudou?

-Tudo evolui né? Sei lá... aquílo estava meio primitivo demais! Quem é que usa foice hoje em dia? Ninguém! Foi por isso que eu aderi a injeção letal! Fácil, rápido e limpo! É mais contemporâneo, sacou? Além disso eu evito a gritaria do pessoal. Aquela foice assustava muito!

-Injeção letal?

-Só simbolismo! O regulamento exige que eu use algum tipo de “instrumento letal”. Não sou eu quem faço as regras... se eu quiser é só eu dizer “morra”, que a pessoa desencarna imediatamente!

-E porque você não faz isso direto, ao invés de usar a injeção?

-E onde está a poesia nisso?

-Em nenhum lugar, eu acho!

-Pois é... tenho uma reputação a zelar!

-Mas eu sou jovem demais! Mal cheguei nos meus tempos áureos!

-Seus tempos áureos já se foram. Faz tempo!

-Poxa... não é justo! Eu sempre tentei ser um cara legal! Porque é que você não vai atrás do Bush? Ele sim devia morrer!

-A hora dele ainda não chegou. Infelizmente! Quando ele morrer vou tirar férias! Ficarei um bom tempo sem ter trabalho depois que ele se for desse mundo! Mal vejo a hora que isso aconteça...

-E eu tenho como recorrer a isso? Tenho uma segunda chance? Sei lá... deve ter algum tipo de recurso!

-Iiii... sai dessa! Essa história de segunda chance é baboseira!

-Mas eu li que...

-E você acredita nisso? São os escritores que ficam inventando essas mentiras! Odeio esses caras... quem lê esses trecos acha que eu sou lesada! Ninguém valoriza o meu trabalho!

-Mas...

-E quer saber o que é o pior? Os caras que fazem filmes! Tem um tal de “Premonição” que diz que eu deixei escapar uma porção de gente que tinha que morrer numa explosão de um avião! Onde já se viu? Isso é uma piada! Ninguém foge de mim, ouviu bem? Ninguém!!

A casa de Carlos treme completamente.

-Calma... não precisa gritar!

-Desculpe! Mas é que essas situações me deixam puta da cara, entende?

-Acho que sim... é mais ou menos como eu me sinto!

-Ah é?

-É sim! Nunca ninguém me dá valor! Meu chefe por exemplo: vive pisando em mim... trabalho feito um louco, estudei feito um condenado, e ele prefere promover um mauricinho idiota que é puxa saco dele!

-Sério? Que pilantra!

-Pior que é sério! E não é de agora não: meus pais também sempre me subestimaram... acho que eles acharam que eu nunca conseguiria ser ninguém na vida! O pior é admitir que, no fundo, eles estavam certos!

-Não diga isso não! Você é um bom rapaz!

-Não sou não! Nunca tive amigos... amigos de verdade sabe?

-Caramba!

-Também nunca tive namorada! O mais perto que eu já cheguei de uma mulher bonita foi de você!

-Xiiii! Só lamento! Nem mulher eu sou!

-Mas você é igualzinha a uma... e das boas!

-Pois é... mas isso é tudo maquiagem! O pessoal achou por bem colocar uma cara mais simpática em mim, entende? Até a Morte tem que ser pop. A concorrência é desleal hoje em dia!

-Sei!

-Poxa cara... que triste sua história!

-Realmente é triste! Nunca fui valorizado!

-Quer saber o que você devia fazer? Sair dessa neura! Tem que deixar essa vida miserável de lado e ir à luta, entende? O mundo está cheio de boas oportunidades por aí esperando por pessoas esforçadas!

-É?

-É sim! Eu ando muito por aí, como você deve imaginar, e sei do que estou falando! Para começar, você devia dar uma repaginada no visual, sabe? Saia por aí, paquere umas gatinhas! Ser autoconfiante faz bem! Deveria ter mudado de emprego, ido atrás de novos horizontes! Camarão que dorme a onda leva!

-É verdade... pensando bem, acho que eu devia ter sido mais ousado!

-Pois é! Mas nem sei porque é que estou te aconselhando! Afinal de contas, você vai morrer daqui a pouquinho! Hahahaha

-Então quer dizer que esse foi o meu último dia?! Os últimos momentos da minha vida foram fazendo hora extra no trabalho! Quer saber? Na verdade você está me fazendo um favor! Ainda bem que apareceu!

-Gostei de ver! Tem que ver isso com otimismo!

-Lá no céu finalmente serei valorizado! Depois de todos esses anos, terei meu valor reconhecido!

-Claro que sim!

-Mal vejo a hora! Vamos dona Morte! Estou pronto! Pode me levar!

-Ok... Lá vou eu!

A Morte tira de dentro de seu sobretudo um tubo transparente com uma longa agulha. Era a injeção letal, o novo recurso que veio para substituir a já ultrapassada foice. A hora de Carlos, o jovem Carlos, finalmente tinha chegado. As feições da carrasca tinham mudado novamente. O aspecto sombrio de sua face tinha voltado, e com uma voz cavernosa, ela proclama o derradeiro veredicto, sob o olhar atento e ansioso do réu.

-Eu, a Morte, declaro que é chegada a hora de você, a quem os demais humanos chamam de Carlos Euclídes Timério, partir desse mundo!

-Tibério!

-Como?

-Meu nome é Carlos Euclides Tibério, não Timério!

-É?

-É sim... mas não tem problema, todo mundo erra! Pode continuar!

-Peraí!

De dentro de seu sobretudo, a Morte retira um "Palmtop". Outra evolução tecnológica implementada em sua profissão. Concentrada, mexe no aparelho durante alguns instantes, sob o olhar impaciente de Carlos que não entende a situação. O inconformismo da carrasca era visível.

-Droga! Odeio quando isso acontece!

-O que foi?

-Eu errei!

-Errou?

-Sim... o Carlos que eu tenho que levar mora do outro lado do país! Aquele já passou dos 80 anos. Eu ainda não me acostumei com esse sistema. Nos tempos do pergaminho eu não errava uma sequer. Droga! Essa porcaria de tecnologia está acabando com a minha reputação!

-Então quer dizer que...

-Você está livre! Sua vida ainda vai durar bastante!

-Mas...

-Não tem "mas" cara! Não é você e pronto!

-Tem certeza que não tem como você me levar junto?

-Se liga! Você tem uma vida inteira pela frente!

-Mas eu sou tão infeliz!

-Aí já não é o meu departamento!

-Me leva, vai? Se quiser eu me mato!

-Ta maluco? Eu já trabalho feito uma louca e você ainda quer me dar mais tarefas? Já não agüento mais fazer hora extra! Eu to te avisando! Se você se matar eu te mato, seu pilantra!

-O que eu posso fazer?

-Viva, cara! Não tem outra alternativa. Lembra dos meus conselhos?

-É... acho que sim!

-Vá à luta! Tem muita coisa pra acontecer na sua vida... e coisas boas! Procure as pessoas que te valorizam, e seja feliz!

-Esse papinho é meio clichê né?

-E quem falou que a Morte é original? Minha função é levar as pessoas, não dar conselhos!

-É... acho que você está certa!

-É claro que estou! A Morte não erra. Quer dizer... eu errei hoje, mas não fui por culpa minha, você viu, né? Foi o Palmtop! Foi o maldito do Palmtop!!!!

-Ok, ok! Não precisa gritar, por favor... a casa está tremendo inteira!

-Desculpe! Eu tenho que ir viu? Tenho muito trabalho a fazer ainda!

-Ok! Foi um prazer te conhecer viu?

-Imagina... o prazer foi meu!

-A gente se vê por aí?

-Com certeza! Afinal de contas sua hora vai chegar um dia! Hahahahahahahahaha

A gargalhada sinistra faz com tudo trema, como em um terremoto.

-Podia rir mais baixo? A casa ainda está tremendo!

-Desculpe!

-Ei, antes de ir... posso te fazer uma pergunta?

-Claro!

-O Elvis morreu?

-Hehehe... a morte jamais revela seus segredos!

E eis que a moça desaparece diante dos olhos de Carlos.

Moral da história: tome cuidado ao ler os nomes completos das pessoas. Você pode matar a pessoa errada.