domingo, 18 de março de 2007

Heroísmo

Caro leitor: antes que passe a ler efetivamente o conteúdo desse testemunho que farei a seguir, gostaria de esclarecer alguns detalhes importantes. Em primeiro lugar, aviso que não sou um cara mal. Não mesmo. As vezes chego a ser bonzinho demais. Em segundo lugar, também gostaria de deixar claro que não sou nem um pouco impulsivo, muito menos vingativo. E a terceira e última coisa é que não, eu não costumo sair fácil do sério. Posto isso, vamos aos fatos.

Era um dia quente, desses em que o Sol a pino consegue derreter muita coisa, inclusive sua paciência. Lá estava eu, parado, à espera do ônibus que me levaria de volta para casa. Não demorou muito, e o expresso que cruza o centro da cidade rumo ao meu destino chegou. Embarquei sem maiores problemas. Dia de transporte folgado, sem lugar para sentar, mas com espaço de sobra para se ficar confortavelmente em pé. Partimos.

No ponto seguinte, uma senhora embarcou segurando na mão de uma garotinha. Casal bonito. Mãe e filha entraram rapidamente, analisando o panorama interno do veículo. Logo a moça avistou um banco vago no fundo do ônibus, para onde rumou sozinha, deixando a menina, que não devia ter mais do que uns cinco anos, ali, sozinha, em meio aquele corredor de pessoas estranhas.

A mãe da menina se sentou, virou pro lado e logo se pôs a cochilar. A garota por sua vez continuava ali, parada. O rosto era inocente, sereno. Mas, como diria o chavão, as aparências enganam. O olhar angelical aos poucos vai mudando, e eis que surge um sorriso em sua jovem face. Não era um sorriso qualquer. Aquela era uma risada maléfica, sapeca. A menininha simpática era na verdade um exemplar vivo daquelas crianças baderneiras que só esperam uma boa oportunidade para levar as pessoas à loucura. Podia conhecer aquela expressão em qualquer lugar. Entrei em pânico, e previ o óbvio: teríamos uma viagem difícil.

De fato eu estava certo. A menina, sem mais nem menos, disparou aos berros para o lado oposto do ônibus levando pânico a todos os passageiros. Os mais distraídos simplesmente deram um pulo quando viram a garota correndo e gritando. Acharam que ela podia estar passando mal, ou fugindo de alguma coisa. Não era nada disso. Seu objetivo era simplesmente aparecer, chamar a atenção. Prova disso é que depois do seu pique, voltou ao lugar de origem e se pôs a sorrir orgulhosa em função do que tinha acabado de fazer. Não satisfeita, gargalhou baixinho, como que comemorando seu triunfo perverso.

Os passageiros ficaram visivelmente assustados com o que tinham acabado de presenciar. A menina parecia ter ficado maluca, e muitos fizeram cara de desaprovação com o gesto da pirralha. Só tinha um problema: ela ainda não estava satisfeita. Aquílo era só o começo.

Pouco tempo depois ela partiu novamente em disparada gritando como louca para o lado oposto do ônibus. Dessa vez houveram feridos. A menina deu um pisão no pé de um senhor que carregava uma sacola cheia de roupas, e fez uma outra moça acertar uma cabeçada na parede na tentativa de evitar um choque eminente. Mas não foi só isso. Uma senhora entrou em surto, já que os berros proferidos a plenos pulmões pela mocinha tinham acordado seu bebê que agora chorava, tornando o ambiente do ônibus ainda mais caótico.

As primeiras reações surgiram. Um rapaz tentou intervir na situação e pedir calma para a garota, mas ouviu em troca um “cale a boca”. Aquílo equivaleu a um golpe no estômago coletivo. Todos no ônibus fizeram expressões de indignação, inclusive eu. Situação inadmissível. Uma força tarefa composta por três senhoras foi tentar intervir junto a mãe da menina, que no momento encontrava-se babando no vidro do ônibus. Ao acorda-la, tudo que ouviram foi um “deixem minha filha em paz”, para logo depois a moça se virar pro lado e voltar a dormir.

A indignação passou a dar lugar a uma incomoda sensação de impotência diante daquela situação. Ninguém, por mais revoltante que tudo aquílo fosse, podia tomar uma atitude efetiva contra a garota, já que sua própria mãe tinha lhe dado carta branca para fazer o que bem quisesse. Reclamar era inútil.

Enquanto isso a menina continuava sua saga enlouquecedora. Incansável, pisou em mais uns dois ou três pés, e sempre fazia questão de distribuir seu sorriso perverso para aqueles que lhe encaravam em desaprovação. Não demorou muito e eu fui vítima da pirralha. Vinda do sul do ônibus em alta velocidade ela parece ter analisado a distância exata e a velocidade adequada que precisaria para me dar um pisão. Cálculo fantástico. Em uma pequena fração de seguendos, distribuiu toda a força do seu jovem, mas pesado corpo por sobre o meu pé. Ela era uma menina, é verdade, mas aquílo foi o suficiente pra me fazer enxergar constelações inteiras de estrelinhas.

A dor era suportável. O que eu não podia tolerar era aquela risadinha irônica que ela me exibiu logo depois de ter se certificado do sucesso de seu ataque ao meu pé. Aquílo sim doeu muito. Minha sede de vingança começava a atingir doses cavalares. Cedo ou tarde teria que reagir.

Mas o que fazer? Não podia simplesmente pedir para que ela parasse. Seria inútil. Estava de pés e mãos atados, e a situação piorava a cada instante. Tentativas frustradas de acordo não faltaram. Por exemplo: uma moça bem intencionada tomou a iniciativa. Numa demonstração de simpatia das mais generosas que eu já presenciei na vida, ela tentou convencer a garota a parar com aquílo. Dessa vez ela não ouviu nem um “cale a boca”. Pior: ao invés disso, tomou um chute na canela. Isso mesmo. Uma pancada, uma “bicudona” desferida sem dó nem piedade pela monstrinha. Aquílo foi o cúmulo do absurdo. A moça, impotente, simplesmente se afastou com os olhos marejados. Era duro de admitir, mas ninguém ali estava preparado para enfrentar aquela menina.

A pirralha era uma vilã da mais vis e calculistas que já tinhamos conhecido. Alguém precisava tomar alguma atitude. Alguém precisava bancar o herói.

Era deprimente observar o olhar de tristeza exibido por todos. Tínhamos sido vencidos por uma garotinha de cinco anos. "Ó, e agora, quem poderá no defender???" era a pergunta que ironicamente passava pela mente de todos os passageiros. Não podia permitir aquílo. Resolvi agir.

Talvez fosse inútil, e provavelmente tudo o que eu conseguiria seria um chute na canela também, porém eu tinha que tomar uma atitude. Avistei a menina vindo em minha direção correndo e gritando, ainda mais escandalosa, ainda mais revoltante do que das vezes anteriores. Não tinha muita escolha. Deixei que meu impulso fizesse o que achasse mais adequado. Fingindo que não estava nem prestando atenção, calculei meticulosamente o tempo necessário para por meu plano em prática.

No exato instante em que a garota passava em minha frente, tomei uma providência. Discretamente estiquei meu pé. Foi um esbarrão leve, quase imperceptível, porém suficientemente eficaz para fazer com que a garota perdesse o equilíbrio, e tomasse um tombo dos mais perfeitos que já tinha observado. Aquílo foi lindo. A menina percorreu uma trajetória elíptica em pleno ar, e aterrissou sua cara feia no solo de forma absolutamente exuberante. Foi um tombo merecedor de prêmio, uma “empacotada” digna de bienal. Em questão de uma breve fração de segundos, toda a prepotência da garota tinha despencado e estava ali, no chão, repousada diante dos olhos de todos os que ela oprimiu durante todo aquele tempo.

A reação foi à esperada. Ela levantou meio assustada, olhou em volta, constatou os olhares surpresos e satisfeitos de todos os passageiros, e se pôs a chorar. Berrando, correu para o colo da mãe dorminhoca que naquela altura já estava em um sono profundo. Ao acorda-la tentou balbuciar meia dúzia de palavras explicando pra sua progenitora o que tinha acontecido. Tudo o que conseguiu foi tomar uma bronca por ter lhe acordado.

Pronto. Missão cumprida. O choro da pirralha logo sumiu e deu lugar a um cochilo. Quem via a menina no colo da mãe nem se dava conta de quão perigosa ela era acordada. Enquanto isso, eu estava ali, quieto, satisfeito com meu ato de bravura. Um senhor que estava do meu lado e que tinha observado a cena de camarote, percebendo inclusive o que eu tinha feito, não se conteve e cochichou no meu ouvido:

-Obrigado amigo... a gente tava precisando disso!

-Imagina senhor. Fiz só a minha obrigação.

-Você foi um verdadeiro herói. Precisa ter coragem pra fazer o que fez!

-Obrigado.

Meu ponto finalmente tinha chegado. Ao desembarcar, ainda ouvi mais dois agradecimentos de umas senhoras que também tinham visto o que tinha feito. Estava feliz. Finalmente me senti como um herói, um daqueles bem insignificantes, mas um herói.

Portanto, cuidado opressores. Quando menos esperarem eu posso estar lhes observando, calculando a hora exata para lhe passar um rodo. A justiça, a paz, e as unhas encravadas alheias jamais serão atormentadas novamente por pés infantis inquietos. Eu prometo.

Até qualquer dia, nessa mesma “bat hora”, nesse mesmo bat blog cretino.