domingo, 17 de fevereiro de 2008

Frescuras

A história a seguir parece ser engraçada. Só parece. Ela relata a trajetória de um homem normal, assim como eu e você. Um homem normal, com uma característica incomum. Algo que algumas pessoas podem classificar simplesmente como uma mera frescura, mas que no fundo não é.

O Samuel, vulgo Samuca, era um cara comum. Bem apessoado, inteligente, articulado... Um típico exemplar daqueles que as mulheres em geral costumam chamar de “bom partido”. Mas do alto de todas as suas virtudes, o pobre rapaz tinha um ponto fraco. Uma excentricidade específica que já tinha feito com que ele terminasse inúmeros relacionamentos, todos pelo mesmo motivo: o “ai guria!”.

Para quem nunca ouviu a expressão, o “ai guria” geralmente é dito durante um diálogo protagonizado por duas mulheres. Uma espécie de recurso lingüístico usado como prenúncio de “grandes acontecimentos”. Um exemplo? Lá vão três:

-Ai Guria! Você não sabe com quem eu falei hoje!

-Ai Guria! Estou tão feliz!

-Ai guria! O que eu faço?

Para o Samuca o “ai guria”, mais do que uma simples frase, era a representação lingüística da futilidade de todo o hemisfério ocidental. Era praticamente impossível ele ouvir o “ai guria” sem sentir um calafrio subir sorrateiro por sua espinha e uma vontade incontrolável de arrancar os próprios cabelos. Inclusive, o “ai guria” não só podia, como já tinha destruído alguns de seus relacionamentos.

O momento em que o “trauma” começou, nem ele sabe dizer. Lembra-se apenas das conseqüências iniciais de sua intolerância à frase.

A primeira vez que algo grave aconteceu foi com a Marcinha. Moça alegre, sorridente. Meiga do dedão do pé ao último fio de cabelo. Começaram a namorar meio que ao acaso, depois de uma festa de fim de ano. Parecia ser um romance com boas chances de prosperar. Por coincidência foi logo depois de outra festa que tudo acabou. O Samuca escoltava a Marcinha enquanto ela levava um bate-papo animado com algumas amigas. Foi então que, meio distraída, disparou:

-Ai guria! Você tinha que ter visto a cara que ela fez!

Vocês tinham que ter visto a cara que o Samuca fez, isso sim. Aquílo tinha doído na sua alma. Sentia-se do lado de um monstro.

Alguns minutos depois ele deu um jeito de levar a Marcinha num canto isolado para, nem ele sabia explicar direito o por quê, terminar tudo. Foi a primeira vez que o “ai guria” tinha acabado com um de seus namoros.

Na segunda vez, o processo foi ainda mais traumático. O Samuca tinha conhecido uma garota fantástica, a Flávia. Ambos eram quase feitos um para o outro. A empolgação com era tanta que ele próprio tinha tomado a iniciativa de pedir sua mão em noivado.

Mas tinha uma coisa que atormentava o Samuel. Será que a Flávia poderia dizer um “ai guria” uma hora ou outra? Gostava dela. Gostava muito. Deus era testemunha do tamanho do carinho que sentia por ela. Mesmo assim não sabia dizer a si próprio como reagiria se tivesse que ouvir da boca da Flávia a expressão que mais abominava no mundo.

Resolveu arriscar. Convenceu a si próprio que a Flávia não seria capaz de tal ato, e resolveu levar adiante o noivado.

O desfecho desse relacionamento ocorreu numa noite em que o Samuca decidiu levar sua futura noiva e o resto de suas famílias para um jantar de confraternização num restaurante da cidade. A Flávia conversava com a irmã do Samuel. Animação total.

-E então Flávia? Muito assustada com o noivado?

-Aaiiiiiii guria! To ansiosa demais!

O Samuca quase caiu da cadeira. Aquílo não tinha sido um “ai guria” comum, tinha sido um “Aaiiiiiii guria”, que tinha um potencial de destruição significativamente maior para seus ouvidos.

Ainda perdido, pediu licença da mesa de jantar e, para surpresa de todos, não voltou mais. Alguns chegaram a cogitar que o motivo do abandono do recinto tinha sido um purê de batatas meio suspeito. Só mais tarde descobriram que o Samuel tinha resolvido terminar tudo... De novo.

Tais acontecimentos fizeram-no reavaliar seus conceitos de seleção. A partir daquele dia ele resolveu fazer uma pré-triagem de todas as suas possíveis futuras namoradas. Tão importante quanto ter bons modos, ser bonita e inteligente uma pretendente não podia dizer, sob hipótese alguma, o “ai guria”. Descobriu que a tarefa era mais difícil do que pensava. O mundo estava tomado pelo “ai guria”. O “ai guria” era dito por todas as faixas de idade femininas (e algumas masculinas também). O “ai guria” era como um daqueles vírus de filmes de zumbis que já tinham contaminado praticamente todos os habitantes do mundo. Achar uma “sobrevivente” ao “ai guria”, não seria fácil.

Foi então que o Samuca conheceu a Joana. Moça fina, inteligente e muito, muito bonita. Mas o melhor nem era isso. Mais do que todas as suas grandes virtudes a Joana se destacava para o Samuel em função do seu repúdio declarado ao “ai guria”. Parecia mentira, mas não era. Logo que soube dos seus problemas com o termo ela não só apoiou o Samuca como se disse atormentada pelo mesmo problema. Só podia ser o destino. Quem diria que existiam duas pessoas nesse mundo que partilhavam do mesmo inconformismo, e, mais improvável ainda: quem diria que elas iriam se encontrar.

As coisas iam tão bem que quando se deram conta, já eram noivos. Agora só faltava o casamento.

Mas a vida... Bem... A vida é irônica.

No dia do enlace, o Samuel e Joana acertavam os últimos detalhes para a cerimônia que aconteceria à noite.

-Está tudo certo então?

-Certíssimo! Já liguei pros meus parentes lá do interior e parece que eles logo chegam!

-Que bom, que bom! E o vestido?

-Prontinho!

-Ufa... Finalmente está chegando a hora! Parece mentira! Mal consigo esperar o momento de ver você dentro dele! Como é mesmo que se diz? “Ai guria! Estou tão feliz!” Hahahaha

-Hahahaha... Não abusa, não abusa!

-Hahaha... Ok, ok! Agora seja uma garota boazinha e venha cá me dar um beijo!

-Vou sim!

-Opa! Peraí... Telefone!

-Tá!

-Alô? ... Tudo bem sim! ... Ah tá, pode deixar! Fique tranqüilo! ... Firmeza mano, firmeza! ... Eu sei, tô ligado! ... Ok, beleza! ... Um abraço!

Silêncio. Enquanto ouvia o Samuel no Telefone a Joana não conseguiu controlar algumas caretas esquisitas.

-Quem era?

-O Beto! Disse que talvez ele se atrase pro casamento!

-Ah tá!

-Que foi? Você parece nervosa!

-Não! Não é nada! Só estou meio... Meio... Sei lá! Esquisita!

-Sei! Tem alguma coisa que eu possa fazer?

-Não! É só eu ficar um pouco sozinha, já passa!

-Então tá! Vou trabalhar nos últimos preparativos e mais tarde a gente se fala, ok?

-Está bem!

Mais tarde, já no altar, o Samuca descobriu que a Joana, a mulher de sua vida, não iria aparecer.

Dias depois ela explicou que descobriu que o relacionamento não daria certo, no dia do casamento. Segundo a Joana, ela não suportava o “firmeza mano”, muito menos o “tô ligado” que para ela significavam a decadência dos bons costumes verbais de toda a sociedade. Como viver todos os dias da vida com uma pessoa que a qualquer momento poderia soltar um “firmeza mano”? Como morar num mesmo teto com alguém que ao invés de dizer “eu sei” poderia optar por um “tô ligado”? E ter filhos então? Como correr o risco de ter os próprios primogênitos usando esses tipos de expressão?

Ele ainda tentou reverter a situação, mas não teve jeito. A Joana estava irredutível.

O Samuca ficou se perguntando que tipo de pessoa teria a coragem de por fim a um lindo futuro só por causa de duas expressões bobas. Chegou à conclusão de que a sociedade estava em decadência, e que ele era uma dos únicos e solitários modelos de conduta que ainda restavam. Uma voz de coerência em meio a tantas frescuras que assolavam o mundo.

Os amigos tentaram consolar:

-Que puta mundo injusto, hein Samuca?

-Tô ligado... Tô ligado!