domingo, 28 de outubro de 2007

Inocência

Filho de seis anos conversando com seus pais:

-Como é que vocês me tiveram?

-Como assim?

-Como é que vocês me tiveram? Quando é que vocês resolveram que queriam que eu nascesse?

-Bem... Na verdade você não foi planejado!

-Júlio!!

-O que foi?

-Isso lá é coisa que se diga pra criança?

-Só falei a verdade, ué?!

-Então vocês não queriam que eu tivesse nascido?

-É claro que queríamos, meu filho. Seu pai é que não soube te explicar direito.

-Mas é a verdade. Eu só estava...

-Ssshhh! Quieto!

-Vocês queriam, então?

-Lógico!

-Bem... Querer a gente não queria, mas aconteceu e foi algo muito bom pra gente.

-Júlio!!

-O que foi?

A Marisa pediu licença pro menino e foi dar uma bronca no esposo num canto da sala.

-Pare com isso! Vai confundir o menino. É claro que a gente queria o Pedrinho!

-Querer sim... Mas não naquela época. Vamos ser francos. A gente não esperava que você ficasse grávida. Nem namorado a gente era. Mas foi ótimo, porque isso uniu a gente. À força, mas uniu.

-Mas ele não precisa saber de todos esses detalhes. Não agora. Ele é muito inocente. Não entende direito como são estas relações afetivas entre homens e mulheres.

-Relações afetivas? Eu achei que a gente só tinha transado à toa e...

-Engraçadinho. Você entendeu muito bem o que eu quis dizer!

Minutos depois, o filho continuou a sabatina.

-Então vocês realmente não queriam que eu tivesse nascido?

-Não naquele momento!

-Chega Júlio. Não bota minhoca na cabeça do garoto!

-Mas eu só estou falando a verdade. Quero ser franco com o Pedrinho. Não é isso que você quer filho? Que a gente sempre fale a verdade para você?

O garoto balançou a cabeça afirmativamente, com a cara mais inocente do mundo. A Marisa não concordou.

-Não dá bola para o que seu pai está dizendo filho. A gente queria ter você sim. Não importa o que seu pai diga, a verdade é que nós queríamos.

O Júlio percebeu que discutir era inútil. Resolveu fazer coro com a esposa só para tentar dar um ponto final ao assunto.

-Sim filho: a gente queria tê-lo. Aconteceu cedo, mas foi ótimo. Você foi o maior presente que Deus já nos deu.

-Entendi. Mas porque aconteceu cedo?

-Como assim?

-Vocês queriam me ter. Mas ainda era muito cedo. Então, como é que aconteceu? O que foi que vocês fizeram pra que eu tivesse nascido tão cedo?

O casal se entreolhou tentando achar uma desculpa plausível. A resposta correta, teria que passar obrigatoriamente por detalhes de uma noitada mal planejada que acabou com uma gravidez precoce.

-Olha: Você quer saber mesmo a verdade? – Perguntou cuidadosamente a Marisa.

-Quero sim!

-Então tá: a verdade é que a gente se amava tanto, mas tanto, que você não esperou e resolveu nascer cedo!

O Júlio entrou na onda:

-Isso aí filho: eu e sua mãe gostávamos tanto um do outro, tínhamos tanto amor sobrando, que você resolveu vir bem rápido pra aproveitar tudo isso!

-Isso aí! Entendeu filho?

O garoto refletiu nas respostas durante algum tempo. Cara de pensativo.

-Acho que sim.

Missão cumprida. A Marisa e o Júlio tinham conseguido contornar a difícil situação. Existiam certos detalhes que deveriam ser poupados, sobretudo para um garoto naquela idade. A inocência do Pedrinho estava preservada.

-Mas vocês têm certeza mesmo que foi por isso que eu nasci?

-Temos sim, por quê?

-É que eu achei que vocês não tinham usado camisinha.

O silencio constrangedor que tomou conta da sala só foi cortado quando o Pedrinho declarou estar cansado e resolveu ir dormir. Algum tempo depois, já na cama, a Marisa estava sentada, imóvel, com cara de perplexa, tentando entender o que tinha acabado de presenciar. O Júlio, sem esconder um sorrisinho de contentamento com a sacada do garoto, desejou boa noite à esposa e foi dormir. Antes de adormecer ainda comentou:

-E depois ainda dizem que TV a cabo não ensina nada que preste para as crianças...