segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Matosinho

A cena: pai aposentado e filho marmanjo discutindo sobre futebol na mesa de jantar. Na poltrona ao lado, a dona Célia, mãe do marmanjo e esposa do aposentado, tenta assistir mais um capítulo de sua novela.

-O Matosinho é seleção!

-Pára com isso. Vê lá se isso é coisa que se diga. O Matosinho?

-Claro... Me diz se tem alguém com mais vontade do que ele ali na “meiuca”?

-Vontade é uma coisa. Mas o cara não acerta um passe. Até eu consigo tocar melhor na bola do que ele.

-Não exagera!

-Não estou exagerando. Pelo contrário: o Matosinho chora de ruim.

-Vocês podiam falar um pouquinho mais baixo?

-Agora não querida. O papo aqui é sério. Estou tentando ensinar alguma coisa pra esse nosso filho.

-Mas vocês estão fazendo muito barulho!

-Querida: não sei se você sabe, mas nunca se interrompe um debate sobre futebol. Ainda mais quando ele chega num nível assim, de intensa discordância.

-Isso aí, mãe! Fica na sua que agora o papo é pra homem!

-Ah, é assim? Pois fiquem sabendo que...

-Volta pra sua novela amor, volta... A gente já dá atenção pra você.

A dona Célia ficou indignada, mas, para evitar briga, se calou.

-Pois então: o Matosinho pode não acertar um passe, mas o cara é um poço de raça. Lembra daquele lance no jogo passado em que ele dividiu a bola com o beque e por pouco não saiu sozinho na cara do goleiro?

-Pois é. Falou tudo: quase ganhou... Por pouco. Não existe um “quase grande jogador”. Ou o cara é bom, ou não é.

-Mas ele é bom.

-Não é não. O cara é grosso de bola.

-Você não tem argumento.

-Ah sim... O seu argumento é ótimo! O cara “quase conseguiu” ganhar uma bola no jogo passado. Só por isso ele merece ir pra seleção. Imagine então se ele tivesse conseguido desarmar o cara. Estaria no nível do Beckenbauer.

-Eu não disse isso!

-Como não? Você acabou de falar!

-Vocês podiam falar um pouco mais bai...

-Sssshhhh... Eu citei uma ocasião do jogo passado. Mas não foi só esse lance, isso é óbvio!

-Me fale de outra grande jogada dele, então.

-Ahhh... Têm tantas!

-Me diz uma só.

-Não lembro.

-Tá vendo? O cara não presta!

-Mas isso não quer dizer nada. Só porque eu não me lembre de outro lance, não é motivo pra você dizer que ele não presta.

-Me poupe, né pai?

-E o que você entende de futebol afinal de contas, hein? Quantos grandes jogadores você viu por aí?

-Você pergunta antes ou depois do Matosinho? Sim, porque do jeito que você fala, a história do futebol deveria ser dividida em AM e DM: "Antes de Matosinho" e "Depois de Matosinho". Para você, o cara está no nível de um craque.

-Já disse que ele não é craque. Só o acho um grande jogador, de muita raça, muita dedicação.

-Ele é um grande “pereba”, isso sim.

-Mas você ainda não me respondeu: quantos grandes craques você viu jogar para estar tão cheio de certeza no que fala?

-Ah tá! Agora você vai começar com esse joguinho cretino de insinuar que eu não sei do que estou falando só porque sou mais novo que você!

-E eu não tenho razão?

-Claro que não. Se fosse assim, o técnico da seleção teria que ter obrigatoriamente mais que 90 anos.

-Chega. Não adianta discutir. Você não entende nada de futebol.

-Se eu não entendo, você também não entende.

-Cresça meu filho... Tem muito o que aprender ainda.

-Cresça você pai! Precisa estudar um pouco sobre futebol. Seus conceitos estão todos defasados.

-Hunf!

-Hunf!

A discussão parecia ter chegado ao fim. A dona Célia, satisfeita, finalmente estava conseguindo ouvir com clareza o que os personagens da novela diziam. Pai e filho estavam ali, emburrados, inconformados com a teimosia alheia.

A situação parecia ter chegado num desfecho, até que, num gesto claro de provocação à figura da dona Célia, seu filho alfinetou:

-Pai! Para terminar o assunto: porque a gente não pede a opinião de quem realmente entende de futebol nesta casa? Mãe?! O que a senhora acha do Matosinho, hein?

O pai gargalhou com a dose concentrada de ironia do filho. A dona Célia, que eles soubessem, jamais tinha assistido a um jogo de futebol na vida. Na cabeça deles, ela mal sabia qual era o objetivo do esporte. Deveria ser daquelas que perguntava “pra que time jogava o homem de preto no meio do gramado”.

Mas a dona Célia parecia ter levado a sério a pergunta. Parou, pensou durante alguns instantes e emendou:

-Depende: o Matosinho, quando joga no meio campo, precisa ser mais acionado. Ele é um jogador limitado tecnicamente, mas tem um bom aproveitamento quando é colocado efetivamente pra jogar. Ele se infiltra bem e tem uma noção de espaço excelente. Além disso, sabe prender a bola na hora certa. Não o acho um jogador brilhante, mas creio que ele pode render bastante quando colocado na função certa. Acho também que pelas características dele, talvez melhorasse jogando como ala direita, chegando à linha de fundo. É bem verdade que o time joga no 4-4-2 e para se fazer isso, a formação teria que mudar pro 3-5-2. De qualquer forma, vejo que valeria a pena se pensar na mudança tática. A equipe provavelmente renderia mais, sobretudo com uma cobertura defensiva bem feita pelos volantes. Isso iria favorecer a liberação ofensiva dos alas, onde, como falei, acho que o Matosinho poderia fazer a diferença.

Boquiabertos. Assim ficaram pai e filho depois de ouvir a opinião da dona Célia.

-O que foi gente? Não concordam?

-Você gosta de futebol?

-Ouço as partidas sempre que posso. Antigamente, eles interrompiam a programação no rádio para transmitir os jogos. Acabei me acostumando e gostando da coisa. Assisto alguns na TV à cabo também. Além disso, sempre leio o caderno de esportes do jornal.

-E porque nunca comentou isso com a gente?

-Sei lá... Vocês nunca perguntaram! Além do mais, homem é muito palpiteiro. Acha que entende muito dessas coisas, quando na verdade mal sabe a diferença entre um sistema de jogo ofensivo e defensivo. Preferi ficar na minha, entendem?

O pai, desconsolado, pediu licença e saiu. O Filho ainda surpreso, também pediu licença, e foi ver o que tinha acontecido, deixando a mãe finalmente livre para desfrutar de sua novela.

-O que houve pai?

-Ah filho... sei lá! A gente passa 30 anos vivendo com uma pessoa e de uma hora para outra descobre que mal a conhece! Isso doi, sabe?

O filho entendeu os motivos da tristeza do pai. Como dormir numa mesma cama com uma esposa que entende mais de futebol do que si próprio? Como sair em lugares públicos sabendo que a qualquer momento a dona Célia poderia pormenorizar o esquema tático vigente na seleção e fazer um discurso em defesa do antigo futebol arte, tomando como exemplo de revolução técnica a criação do "Carrossel Holandês"? E ele também não estava imune. Como contar para os amigos que a própria mãe entendia tanto de novela quanto de esquemas de marcação? Seria humilhação pública na certa.

No dia seguinte, a dona Célia ainda não tinha entendido a súbita mudança de comportamento do marido. O Filho explicou que ele estava chateado, e que era melhor não interferir. Ela até pensou em pedir desculpas, mesmo sem saber bem de quê, mas o jogo já ia começar e ela resolveu deixar o papo com o esposo para mais tarde. Não podia deixar de ouvir seu futebolzinho por nada nesse mundo.

-Chuta Matosinho... Chuta!