Essa semana tive a oportunidade de ir assistir a uma apresentação do espetáculo “Alegría”, do mundialmente conhecido Cirque du Soleil. Sim, a palavra correta para o caso é “oportunidade”. Não, eu não ganhei na loteria e não sou milionário. Não que quem tenha condições de pagar um ingresso para o espetáculo (os valores das entradas variam de R$130,00 até R$400,00 aqui em Curitiba) seja necessariamente um capitalista selvagem. Apenas acho que seria uma loucura um universitário bolsista pé-rapado que nem eu, desembolsar tamanha quantia de dinheiro. Pude ir, graças a uma boa ação da empresa que trabalho, que num gesto de incentivo aos funcionários, bancou todos os ingressos.
De qualquer forma, deixo claro que não pretendo contar aqui minhas impressões a respeito do espetáculo. O que me motiva a escrever esse devaneio é outra coisa: fui acusado (injustamente, que fique bem claro) de não ter curtido o circo. O motivo? Minha falta de originalidade na hora de adjetivar o que tinha visto.
***
-Quer dizer então que você foi no Cirque, né José?
-Sim. Fui sim!
-Mas e aí?
-Aí o quê?
-Ora... como é que foi?
Esse é o tipo de pergunta difícil de ser respondida. Não parece, mas é. Pense comigo: como compilar duas horas e meia de espetáculo em uma frase curta ou em uma única palavra, em um único adjetivo? Como conseguir retratar através disso todos os inúmeros fatos que você presenciou e suas impressões a respeito? Eu até que tentei:
-Ah... Foi bom!
Silêncio. O interlocutor fica me encarando, como que esperando o desfecho de meu relato. Eu, fico impávido.
-Bom?
-Sim!
-Como assim?
-Foi bom, ué?! Divertido!
-Cara: você vai ao melhor circo do mundo, e tudo o que tem a dizer é que foi “bom”?
-Sim.
-Ora! Me poupe! “Bom”? Isso lá é adjetivo que se dá a um show desse porte? Seja mais esforçado...
-Tá bom, tá bom!
-E então, como é que foi?
-Muito bom.
-Ahh Zé!
-O que foi?
-Muito bom? Você não gostou, não é?
-Gostei sim. Claro que gostei.
-Então como é que você tem coragem de chamar isso de “muito bom”? Seja criativo.
-Ué? E “muito bom” não serve?
-Serve, mas é pouco. “Bom” é o cirquinho de lona que a cada dois meses monta acampamento lá perto de casa. “Muito bons” são os circos que viajam pelo país. Mas você está falando do Cirque du Soleil. O melhor do mundo. Nem parece que você assistiu!
-Ok, desculpe. Não sabia que isso era errado.
-Errado não é! Mas isso lá é adjetivo que se dê? Francamente, hein José!
-Já pedi desculpas.
-Eu sei. Mas vá lá: prossiga!
-Com o quê?
-Com a descrição, né? O que mais poderia ser?
-Ah ta... Bem... O show tem números muito legais. É tudo muito bonito. Muito bem feito.
-Sei. O que mais?
-Ah... É tudo muito... Muito... Muito bom!
-Você está me sacaneando, né?
-Não! Mas é que a verdade é essa. Eu achei muito bom.
-É o melhor circo do mun...
-Eu sei que é o melhor do mundo, você já falou isso uma dúzia de vezes. Mas é que na minha escala de elogios, “muito bom” é algo muito... Muito bom, sabe?
-Não concordo. Olha, a gente é amigo. Pode abrir o coração. Você não gostou do show, não é?
-Já disse que gostei!
-Não é o que parece.
-E o que interessa para você saber se eu gostei ou não do tal circo? Qual a diferença que isso faz, afinal de contas?
-Esse é o melhor circo do mundo!
-Eu desisto...
-Quer saber? Chega... Continue contando como foi. Como você mesmo disse, não me interessa saber quais suas impressões. Quero os detalhes, só isso. Prometo que não vou interferir.
-Sei. Vou fingir que acredito.
-Pode apostar. A partir de agora, sem interferências. Mas do que você mais gostou afinal de contas?
-Ah... Os malabaristas são ótimos, o número do trapézio é super bonito. Tem umas meninas contorcionistas, um cara que faz acrobacias com fogo... Mas o mais bacana mesmo, foram os palhaços.
-Pára tudo Zé!
-O que foi agora?
-Você vai ao maior circo do mundo e diz que preferiu os palhaços?
-E qual o crime nisso?
-E não é óbvio? Eles têm artistas únicos. Profissionais que fazem acrobacias que mais ninguém no mundo é capaz de realizar. Desafiam os limites do corpo humano. Você assistiu a tudo isso na sua frente, a uns poucos metros, e diz que o que o circo apresentou de melhor foram os palhaços?
-Não disse que foram os melhores. Disse que foram os que eu mais gostei.
-E qual a diferença?
-Tem artistas mais completos no show, isso é fato, mas o número em que eu mais me diverti foi o dos palhaços.
-Não concordo.
-Concordar com o quê, homem de Deus?
-Com esse seu desprezo a um espetáculo tão fabuloso.
-Eu não estou desprezando porra nenhuma!
-Calma... Não se estresse!
-Como é que não vou me estressar se você fica falando um monte de abobrinhas? Quem foi no show fui eu, quem assistiu a tudo fui eu, portanto, só eu tenho o direito de afirmar se o espetáculo foi bom ou não. Eu uso os adjetivos que quiser, e ninguém tem nada a ver com isso, entendeu?
-Mas José: você não está sendo muito ameno nos seus elogios? Pense bem. Esse é o melhor circo do mundo e...
-Quer saber? Chega! Desisto! Juro que tentei agüentar, mas não deu.
-É que você parece muito desanimado. É até natural que alguém que tenha gasto uma nota preta num ingresso, como é o seu caso, acabe se decepcionando um pouco e fique com uma dor na consciência, pensando: “puxa, paguei tão caro e o circo não era isso que eu esperava!”
-Mas eu não paguei nada. Fui de graça.
-De graça?
-Sim. A empresa pagou nossas entradas.
-E você ainda tem coragem de reclamar?
-Como?
-Você está reclamando de um espetáculo que você nem ao menos pagou pra assistir? Que moral você tem pra falar alguma coisa, hein?
-Mas eu não estou reclamam...
-Isso é o cumulo do absurdo, José! Você menospreza um espetáculo desse porte mesmo sem ter desembolsado um centavo para assisti-lo. Como você tem coragem?
-Eu não menosprezei nada e...
-Você é um ingrato, ouviu bem? Um ingrato!
-Mas eu não queria ser ingrato. Desculpe!
-Quer saber José? Chega de conversar com você! Você vai ao melhor espetáculo do mundo, e não valoriza isso. A ingratidão é algo muito feio, sabia? Além do mais, você teve a coragem de dizer que odiou o circo.
-Mas eu disse que era muito bom!
-Tá vendo? É ainda pior! Está mentido! Diz uma coisa que obviamente não condiz com seus gestos. Acha que sou bobo?
-Por favor, me desculpe e...
-Chega! Outro dia a gente se fala. Quem sabe você tenha uma crise de consciência e perceba o gesto de ingratidão que está cometendo. Adeus...
O fulano vira de costas e me deixa ali, tentando me justificar. Eu ainda tento reagir... Em vão:
-Ei! Volta aqui... Era espetacular, ouviu bem? Espetacular!