domingo, 8 de julho de 2007

Tagarela

E eis que ciência derruba mais um mito que imperava no bom senso popular: segundo uma pesquisa realizada por cientistas de uma universidade do Arizona, nos EUA, os homens falam tanto quanto as mulheres. Durante oito anos, esses especialistas gravaram trechos de conversas de grupos masculinos e femininos, a fim de estabelecer uma comparação. O resultado final apontou que o número médio de palavras ditas por ambos os sexos é estatisticamente equivalente. Ou seja: o velho preconceito de que as mulheres são infinitamente mais tagarelas que os homens, caiu por terra.

Para quem se interessar, a matéria completa pode ser lida no portal de notícias G1, clicando aqui.

De fato, a pesquisa é uma arma poderosa na mão das representantes do sexo feminino. Está cada vez mais difícil para nós homens apelar para a ciência em defesa de nossos argumentos supostamente machistas.

O Arnaldo é prova viva disso:


***

-Arnaldo! Lê isso daqui! O que você tem a me dizer, hein?

O Arnaldo tomava o café da manhã tranqüilamente quando sua esposa, a Verônica, lhe enfiou o jornal na frente do rosto com um ar triunfante. Ele demorou um pouco a entender o que tinha acontecido. Correu os olhos pela página do jornal e se deparou com a manchete do caderno de ciência: “Pesquisa revela: homens falam tanto quanto as mulheres”. Imediatamente se lembrou da noite anterior. Estavam na casa de um casal de amigos, jantando, quando a verônica desandou a falar e não parou mais. O Arnaldo tentava conversar com seu velho amigo, mas era intimidado pelo diálogo fervorosamente empolgado da dupla feminina da mesa. Aquílo tinha lhe deixado inconformado. Na hora olhou para o Paulo (o dono da casa), deu de ombros e sem dizer nenhuma palavra, declarou com os olhos ao colega: “Fazer o que? São mulheres...”

Na volta para casa desabafou: disse poucas e boas para a Verônica. Como é que pode alguém ser tão faladora? Alegou que tinha passado vergonha na casa do amigo. Que estava casado com a “rainha da tagarelândia”. Ela ficou revoltadíssima. Não admitia ser chamada de tagarela, sobretudo por seu próprio marido. Ele retrucou dizendo que perdoava ela, afinal de contas, todo mundo sabia que mulheres são faladoras por natureza. Aquílo doeu na alma da Verônica. Jurou a si mesma que ia se vingar daquela insinuação machista.

E eis que, no dia seguinte, quando abriu o jornal, ela se deparou com a boa nova. Era o destino. Tinha o argumento que precisava para provar para o Arnaldo que não era tagarela. Não pensou duas vezes: levantou da cadeira e foi ao encontro do marido para questionar seus argumentos machistas.

-Anda Arnaldo! Fala alguma coisa!

-Legal!

-Como assim, “legal”? Cadê aquela história de que nós mulheres somos falantes, hein? Porque você não fala agora aquílo que tinha me dito ontem? Quem ouvisse você falando ia achar que eu sou a maior faladora da paróquia. Como é que você disse mesmo? Rainha da língua solta? Não... não era isso! Ah, lembrei: rainha da tagarelândia! Aquílo me doeu Arnaldo. Não se fala isso para uma mulher. Não se faz uma insinuação dessas. Você sabe muito bem que eu nunca fui de falar muito. Sempre fui contida, na minha. Mas você não tava nem aí, né? Preferiu ser machista! Preferiu me acusar de ser algo que eu nunca fui! Vejam só... tagarela! Você me chamou de tagarela Arnaldo. Isso não se faz. Sabe o que eu devia fazer? Pegar um gravador, colocar ele na sua camisa, e gravar quantas palavras você fala por dia! Não ia ter fita que chegasse, né Arnaldo? Você que fala demais e eu que sou a tagarela! Ora, vejam só! Eu disse que você ia me pagar Arnaldo. Eu disse! Você vai se arrepender e...

-Veja bem amor...

-Shhhhhh... Não me interrompa! Quem está falando agora sou eu! Você vai ficar aí, sentado, ouvindo! Tava querendo me interromper, né? Tá vendo só? Olha como você é tagarela! Mal me deixou falar, e já ia tentando me interromper. Mas hoje não Arnaldo. Hoje você não vai abrir essa sua matraca. Vai me ouvir. Me ouvir quietinho. Só vai falar quando eu deixar. A ciência está ao meu favor. Tenho argumentos. Agora, não importa o quão machistas sejam os seus comentários, eu tenho como retrucá-los. Como é bom ter a teoria a nosso favor. Você queria ter esse trunfo, não queria? Queria poder ter um jornal com a manchete “Pesquisa aponta: mulheres falam de duas há três vezes mais que os homens”. Você queria, né? Daria qualquer coisa para ter um jornal com uma manchetes daquelas para poder esfregar na minha cara! Não é verdade, Arnaldo? Queria... queria, mas não tem! Quem tem sou eu! Quem pode provar seus argumentos sou eu, não você! Isso dói, né Arnaldo? Como deve ser chato perceber que se está errado! Não queria estar no seu lugar agora. Não queria mesmo! Ouvindo sua própria esposa lhe dar uma lição de moral. Sua própria esposa provando que você estava errado. Anda Arnaldo. Tem alguma coisa pra falar? Estou louca pra ouvir o que tem a dizer! Quais seus argumentos agora, qual será sua defesa. Vamos Arnaldo: o que tem a me dizer?

-Nada...

-Como nada? O gato comeu sua língua? Não tem o que dizer, né? Sabe que eu estou certa. Sempre soube. Sabia que eu não era tagarela, mas mesmo assim fez questão de me acusar. Você me dá pena Arnaldo. Sabe o que é sentir pena de alguém? Não sabe, não é? Se soubesse não teria dito aquílo. Você não teve pena de mim ontem. Se tivesse sentido pena, saberia o tamanho da pena que eu estou sentindo. Que pena, né? Você sabe que eu odeio mentiras Arnaldo, e mesmo assim você mentiu pra mim ontem. Mentiu não: me humilhou! Usou um argumento baixo, machista. Bem que minha mãe tinha me dito que você era assim, que era pra eu tomar cuidado. Tinha me falado: “olha minha filha: esse homem não é tudo isso que você pensa”. Mas eu não ouvi, estava apaixonada. Sempre estive. Sempre dei o melhor de mim pra você: o melhor carinho, o melhor humor, as melhores fases da minha vida... e como você me retribui? Me chamando de “rainha da tagarelândia”. E se fosse verdade pelo menos, tudo bem! Eu sei admitir meus defeitos. Mas falar demais nunca foi do meu gênero. Sempre fui contida, sucinta. Aliás, acho que estou me tornando até mais contida do que antes, graças à idade. Sinto que estou mais serena. Mas você não sente isso não é Arnaldo? Você só soube me qualificar de uma maneira leviana. Isso machuca, sabia?

Nessas alturas o Arnaldo nem ouvia mais o que era dito pela Verônica. Estava entretido lendo o jornal. Por sorte, reparou que ela tinha parado de falar, e teve tempo de balbuciar a primeira coisa que veio à sua mente.

-É, né?

-É sim Arnaldo, é sim! Que bom que admite isso. Pelo menos isso, né? Espero que tenha percebido o tamanho da calúnia que cometeu. Esses seus conceitos machistas estão errados! Será que não percebe isso? Será que todas as vezes que você inventar uma mentira eu terei que usar a ciência pra te provar o contrário? Acho que não, né? Não iria ser legal, não é? Eu imagino como você deve estar se sentindo agora. Deve estar pensando: “Poxa! Como eu fui idiota. Não devia ter dito uma besteira daquelas. Não é isso? Não é assim que você se sente? Arnaldo? Arnaldo??

Distraído novamente:

-Mmmmm?? Sim, sim!!

-Então... mas quer saber? Eu vou te perdoar. É Arnaldo, eu vou te perdoar. Você já foi castigado como merecia. A ciência está do meu lado. Eu não tenho culpa de ser coerente. Além do mais, apesar de tudo, apesar de você ter me chamado mentirosamente de tagarela, de “rainha da tagarelância”, eu ainda te amo. Sempre te amei. E não vai ser uma pisada na bola sua que vai acabar com esse sentimento. Mas eu espero realmente que isso tenha te servido de lição. Espero que tal situação nunca mais se repita. Espero que das próximas vezes você meça suas palavras. Perceba o quanto isso é estúpido. O quanto sua afirmação foi infundada. Você atentou contra a minha dignidade, contra a reputação de todas as mulheres desse mundo! Ouviu bem? Do mundo!! Mulheres tagarelas? Não Arnaldo... mulheres e homens tagarelas! Tagarelas em igualdade. Equivalentes em tagarelice. Assim são homens e mulheres. Iguais, ouviu bem? Idênticos, semelhantes. Fora o lado biológico, o resto é igualzinho! Não tem diferença nenhuma. Mas eu te perdôo Arnaldo. Está perdoado.

-Obrigado...

-Sabe? Hahahaha... eu estava pensando... chega até a ser engraçado! Tagarela, eu? Hahahahahaha... só rindo mesmo! Você inventa cada uma, Arnaldo. De onde você tira isso? Hahahaha... ai ai! Tagarela, hein? Ah Arnaldo... como você me dá pena! Sorte a sua que eu sou tolerante! Que eu não fico grilada com esse tipo de coisa. Será que algum dia você vai abrir o jornal e dar de cara com uma manchete que confirme seu ponto de vista? Será Arnaldo? “Pesquisa aponta: os machistas sempre estiveram certos”. Difícil, né Arnaldo? Mas não perca as esperanças... quem sabe um dia isso aconteça! Hahahaha

A Verônica gargalhou, se virou e foi embora triunfante. O Arnaldo suspirou conformado, e perguntou para si mesmo: “mulheres... quem entende?”.

Ninguém Arnaldo... ninguém!